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segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

o conto do canto: Ágatha


2019 já começou estranho para as favelas do Rio de Janeiro. Na disputa das eleições de 2018, o candidato que prometia “atirar na cabecinha” foi eleito. Desde 2014, o pacto entre facções e Estado, ocorrido para pacificar os grandes eventos da Copa e Olimpíadas, já havia caducado. Portanto, em 2019 inevitavelmente esperávamos uma evolução para a gravidade.

Na unidade de saúde da família em que trabalhava semanalmente no Complexo do Alemão como professor, Clínica da Família Zilda Arns, o clima desde janeiro de 2019 começou a ficar carregado, as visitas domiciliares, realizadas pelos profissionais das equipes, estavam canceladas, relatos do aumento da frequência dos confrontos policiais se avolumavam, e até o ir e vir no asfalto em horário comercial estava tenso, no morro então, insuportável. Batidas diárias da polícia antes das 6h, justamente quando trabalhadores e crianças estão na rua a caminho da labuta e da escola.

A sensação era a mesma de quando o vento para em um dia completamente cinza, à espera da primeira gota do temporal. O toró se anunciava.

Despencou em setembro quando a menina de 8 anos, Ágatha Félix, foi assassinada pela polícia dentro de uma van, acompanhada do avô.

Ao chegar à Zilda Arns na semana posterior à tragédia, nunca senti tanto peso nos ombros, os profissionais e as pessoas ali esperando atendimento, mesmo sem falar nada a respeito, estavam no mesmo velório. As feições, os olhares, o modo de falar, o trabalho no piloto automático.

Na supervisão dos estudantes de medicina da UFRJ, não conseguimos progredir. Foi lido o diário semanal do aluno Matheus Nolasco, que terminava assim: "na chuva dessa cidade tem sangue de criança preta". A cidade estava em prantos, a gente também. Juntamo-nos com um projeto de reunia vários cursos da UFRJ, o PET-Saúde, e decidimos iniciar a partir dali uma ocupação, Ocupação da Saúde pela Paz no Alemão, chamamos todos os movimentos sociais que tínhamos contato: Oca dos Curumins (capoeira), Abraço Campeão (lutas marciais), Na Ponta dos Pés (balé), Educap (educação e serviço social), Estação Skate (skate), Slam Lage (poesia) e Voz das Comunidades (comunicação). Todos estavam no mesmo velório. Os relatos dos que viviam lá eram arrebatadores, nós do asfalto, mesmo trabalhando lá, não sabemos absolutamente nada do que acontece quando o sol se põe.

O Ocupa foi o movimento mais potente que já vi em 13 anos como médico de família e comunidade. No intervalo de uma semana, produzimos o primeiro evento gigantesco voltado para as crianças do Alemão dentro da unidade. Toda a produção por zap, oficinas de música, pintura, teve até oficina de sonho, brotaram pula pula, pipoqueiro, um batalhão de voluntários, levei meus filhos e minha companheira entrou no movimento.



Pelos relatos, as crianças estavam em transtorno de estresse pós-traumático, não queriam sair de casa, entrar em vans, o discurso monotônico sobre a morte, a pergunta repetida: quando e como vou morrer? E por isso escolhemos esse público-alvo para o primeiro evento. 260 crianças estavam presentes. #ÁgathaPresente 

A filha de uma das participantes do Ocupa era amiga da Ágatha, haviam brincado juntas dias antes da tragédia. Descobri que uma amiga minha, a sanitarista Thaís Severino, era colega de trabalho da mãe da Ágatha, Vanessa. Assisti a uma Live no final de 2019 em que ela e outras mães que perderam filhos por tiroteio contavam suas histórias. Eu era só choro e enviava comentários: lindaaa!!!, maravilhooosaaa!!!!!!, tipos de comentários que não têm nada a ver comigo, não costumo multiplicar letras nem muito menos exclamações. Uma das discussões era sobre a tentativa da polícia em resgatar os projéteis no IML para se livrarem do flagrante, e a enorme contribuição de profissionais da Defensoria Pública durante todo o processo. Estava transtornado, e quando isso acontece geralmente me recolho para escrever, ou balbuciar alguma melodia triste.

Verão de 2020, estava na praia, e não saía da cabeça a imagem de Ágatha, fortemente repercutida na mídia, ela sorrindo, fofa, segurando um balão amarelo. Há um livro do qual meus filhos gostam, Gildo, em que um elefante não tem medo de quase nada, vê filme de terror, pula do trampolim mais alto da piscina, sobe num palco, canta e toca guitarra, embarca numa montanha russa e abre os braços na descida. No entanto, ele guarda para si um tipo de medo específico, meio tolo, que é do barulho do estouro de balões de festa, ele se apavora na véspera de festa de aniversário de amigos, pois inevitavelmente ouvirá estouros. No dia da festa, ele se esconde embaixo da mesa após o parabéns, mãos tampando os ouvidos.

Vieram os primeiros versos já com a melodia, “eu vou furar meu balão amarelo / acabou o brinquedo / ninguém fica mais velho”, a ciranda chegou dias depois.

A ideia desde o início era uma melodia no trecho da ciranda, para as crianças, e uma outra, mais intimista, para os adultos. À medida em que fui mexendo, fui incorporando as referências do Alemão, Curumins e Ponta dos Pés, capoeira e balé que ela mesma praticava, e Fazendinha, a microrregião na qual morava, inclusive o nome de uma das equipes de saúde da Zilda.

Levei o rascunho da música numa quinta feira em brasas da semana pré-carnavalesca de 2020 à casa do Zartinho (Moisés Nunes) e a terminamos, com harmonia e tudo.

Como o tema é de total delicadeza, mostrei uma gravação de celular que fizemos nesse dia para Thaís e ela mostrou à Vanessa, que se emocionou, gostou e eu entrei no carnaval, sem saber que seria nosso último, de alma lavada.

Pandemia. Em maio de 2020, a polícia mata mais de 15 jovens no Alemão e os moradores quebram a quarentena para resgatar os corpos nas ruas. Sangue nos olhos, entro na madrugada para escrever alguma coisa http://riocife.blogspot.com/2020/05/pandemo.html e fico na certeza de que a música precisava ser gravada.

Diante da dimensão do desastre, seria natural nos afastarmos, fugir para não sofrer, mas a atitude da Vanessa e de outras mães na mesma situação, empurrou-nos para encarar a monstruosidade master. Ágatha não foi a única no ano de 2019. Em 2020, pandemia plena, 12 crianças foram mortas por balas nas favelas e periferias do Rio.

Começamos a produção a passos lentos, pensamos no piano de Rodrigo Alzuguir e na percussão de Geiza Carvalho, que tocou grande parte da percussão de Medo Medieval,  mas não conseguimos viabilizar com a loucura que foi aquele primeiro ano pandêmico. Aproveitamos um baterista, amigo de colégio do Zartinho, Felipe Fire, que ingenuamente foi levar sua criança para conhecer os rebentos do brother. A bateria por acaso já estava montada no home studio do 1o andar, e aí, topa? Foram 2 takes, e como o primeiro geralmente é o valendo sem ser, foi o que ficou. A cama foi forrada pelo piano e 7 cordas de Zartinho nos contrapontos, ao ponto. A ideia na estrofe era justamente frasear respondendo um verso e logo em seguida preparar para o próximo como na viola de 10 do repente nordestino.

Adelson Jantsch, o Delsinho, é médico, mas titubeou quando marcou ainda com caneta a opção de curso na UFPR, estudou violão clássico e toca de tudo. Trabalhamos juntos no bairro da Penha, na hora do almoço ele fazia questão de tirar um violoncelo do carro para treinar na Arena Carioca Dicró, um ótimo centro cultural que nem sei se ainda funciona e para onde íamos comer um pf na nossa escassa uma hora de almoço. Foi guitarrista do Empenha, nossa banda de médicos de família e comunidade que trabalhavam na Penha e arredores. Depois, por um tempo, costumava levar seu clarinete preto bonito para as nossas sociais. Estávamos juntos, fantasiados e suados no final de um dia de carnaval tbt, quando fomos assaltados por uma peixeira enorme, Delsinho havia saído de um bloco no qual tocara com o clarinete, levaram o dito cujo com case e tudo. Comprou outro, e foi neste que ele soprou os fraseados e o solo que preenchem a canção. No assalto, fui o único que não sofreu avarias, pois estava devidamente fantasiado com top e saia longa, os meus pertences estavam numa bolsinha perto da cueca. Levantei os braços, só viram o suvaco cabeludo.

Matias Salina é um argentino de Rosário super bem-humorado que abrilhantou recentemente o Harmonia Enlouquece, banda na qual toco percussão e que me serve como psicoterapia sem eles saberem há 13 anos, o timbre do bandoneón é inconfundível, fecho os olhos para ouvi-lo nos ensaios.

Numa tarde ele foi gravar para uma faixa do Harmonia no estúdio de Zartinho e Bruno Villar e de novo rolou: poderia estar roubando, mas estou só pedindo clemência para você ouvir isto aqui e, quem sabe, colocar este timbre de Piazzolla para perfumar de jasmim alguns compassos. E assim foi. ¡Gracias! Na foto ele apareceu com o nosso queridíssimo Kiko, violonista e um dos fundadores do Harmonia.

Reservo este final para os vocais de Thuane de Oliveira e Thayllane de Souza, jovens lindas e talentosas do Alemão. Desde o início da produção fiquei encabulado de cantar sozinho a música sendo homem branco cis nordestino que mora na Gávea. Pedi à nossa parceira e líder comunitária, Lúcia Cabral, indicações de vozes femininas do Alemão e ela me enviou o contato delas. A primeira demo que nos enviaram era solar, brincando com a melodia com ginga meio gospel funk, adoramos.


A presença delas foi essencial para a minha segurança em manter o leme na voz. Valeuzíssimo, meninas!



Teve um fato que só compartilhei com o Zartinho. A música foi lançada nos tocadores em 26 de novembro de 2021. Às 8h43m deste dia a enviei para Vanessa, mãe da Agatha. Antes, no dia 22, havia retornado o contato para lhe dizer que finalmente teríamos o lançamento naquela sexta, e ela deu a maior força. Pois bem, ela só respondeu meu zap no dia do lançamento às 17h10. Neste dia, atendi na Clínica da Família Helena Besserman Vianna, no Rio das Pedras, Jacarepaguá, em meio à epidemia de influenza, bombando, minha enfermeira preferida, Danielle Conceição, de férias, ou seja, a ansiedade que tive pela ausência da resposta de Vanessa foi infinitamente maior do que a de dezenas de atendimento que realizei exaurido até a última gota.

A sua resposta no zap foi daquelas imagens de trevos da sorte, o suficiente para sextar, no entanto sextei e lido com essa música até hoje com a sensação de que preciso e precisamos fazer mais, se existe mote para se mobilizar politicamente no Rio, as mortes de crianças por balas perdidas-encontradas é indiscutivelmente um dos maiores. Ter gente que ganha dinheiro com a invenção desta guerra, dos dois lados, que na real é de um lado só para quem não vive no morro, é a face mais sórdida deste espetáculo medíocre, do qual só pode ter os holofotes destruídos pelas marias, mahins, marielles, ágathas e, principalmente, por nós mesmos.


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playlist Ágatha

matéria do The Guardian


ps: em março de 22 o Ocupa vai produzir um evento de música e poesia na Praça da Vivi, no Alemão, o Praia Vermelha deve tocar lá, apareçam e participem do coletivo. a princípio será dia 12/3, sábado, a partir das 14h. informaremos nas nossas redes.



Ágatha

(Tufa e Moisés Nunes)


 C7/9                 Eø  A7               Am7       C7/G

eu vou fu- rar        meu balão ama- relo

                          D/F#      Fm6

acabou o brin-quedo

                              C

ninguém fica mais velho (2x)


                     G                           C

me esparramar nas ruas sem fuzis

                       G                       C  C7

quem for de lá pode chegar aqui

               F                            C

amanhecer e somente ouvir

             G                                 C

o rouxinol, pardal e bem-te-vi


   C    Bb7                                 Am     C7/G

aqui           o Alemão tem cor preta

                                   D/F#   Fm6

e o senhor não se es-queça

                              C

suas mãos, minha dor

   C    Bb7                                 Am     C7/G

aqui           o Alemão tem cor preta

                                  D/F#    Fm6

nem que tudo se in-verta

                             C

vou cantar minha cor


                  G                                  C

quero dançar na ponta dos meus pés

                  G                               C      C7

vou me jogar nos curumins convés

                  F                    C

na Fazendinha vou cavalgar

              G

na amarelinha

                           C

pular do céu no mar

       

  


créditos:


voz: Tufa

vocais: Thayllane de Souza e Thuane de Oliveira

violão de 7 cordas e piano: Moisés Nunes

bateria: Felipe Fire

clarinete: Adelson Jantsch

bandoneón: Matias Salina

produção musical: Bruno Villar e Moisés Nunes

gravação, mixagem e masterização: Bruno Villar e Moisés Nunes

gravada entre 2020 e 2021 no estúdio Praia Vermelha (Urca, Rio de Janeiro)