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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

o grande canal

a divina marquesa da ponte me conquista

enche de esperança  meu asfalto

muita gente atravessa

cabelo branco, boina, guarda chuva de amanhã

pouca gente fica sob um arco gótico e desmitifica todo
 renascimento veneziano

touca

um telefone rouco de um italiano seco no meio do tudo molhado

barroca é uma igreja longe manchada de fog

a divina marquesa da ponte me conquista

sorri gioconda e sua gargalhada faz marolas nas escadas do cais

molha meus pés descalços

cade minhas botas de borracha?

tem uma viela no meu olho de água estreita

reflete pedra de peso medieval

a quantos graus da proa a gondola girará?

espreita

o vaporetto torto numa ré sobre o porto

Mercato

Veneza comprou a seda da China

e a divina marquesa me ensina

que cada ponte me leva a Rialto


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

bom dilma

Uma carta sempre pode falhar ao seu destino.
(Jaques Derrida)
Mas mesmo assim precisa ser escrita.
(eu mesmo)


Um dia passando de táxi na frente do Palácio da Alvorada vi no piso superior direito uma sala de estar ampla e bonita com uma grande TV ligada e tive a certeza de que a senhora estava lá. Já ia alta a madrugada e pude lhe ver sentada numa poltrona violeta, vestida com um tailleur branco com detalhes pretos, pés descalços com unhas bem feitas amparados no banquinho em frente, um tablet desligado no colo e os olhos fixos na TV. A sala em meia luz. Fiz mais um esforço para imaginar o que estaria na tela e, claramente, me veio o último capítulo da segunda temporada de House of Cards, que seu colega Obama já tinha visto antes de nós dois. Digo colega porque best friend está longe de ser após Snowden e WikiLeaks.
A inescrupulosa escalada ao poder do Frank Underwood nos convida à reflexão dos nossos próprios limites entre desejo, razão e ética, mas também salpica na tela toda a sujeira por detrás do paletós, os financiadores de campanha, os lobistas e todas as mais de 500 espécies de anelídeos sanguessugas que se alimentam de milhões de eleitores-hemácias. Pois bem, nesse mesmo dia em que lhe vi no Palácio, presidenta, havia votado “sim” no Plebiscito por uma constituinte exclusiva, o embrião da reforma política. Sei que a senhora também votou igual a mim e a 7.999.999 brasileiros.
Presidenta, eu lhe mando cartas desde 2011, sei que você as lê com carinho, mesmo sem entender uns trechos, já foram mais de 15 correspondências. Saiba que apesar do mensalão, de apertar a mão de Collor e Maluf, de denúncias diárias do Globo, Folha, Estadão e Veja, votei na senhora no primeiro turno e assim o farei no segundo, e sabe por quê? Porque em 44 anos de vida brasileira nunca havia conversado com uma empregada doméstica na poltrona ao lado do avião, nunca paguei tão caro a uma diarista e nunca, mais nunca mesmo, vi uma agente comunitária de saúde estudando medicina em uma universidade pública, tendo ainda como colega de turma a sua filha. Para a senhora ter ideia desse nunca, no meu tempo de faculdade havia apenas 1 negro nas 12 turmas,do primeiro ao sexto ano. E era de filho de diplomata.
E quer saber o que eu acho dos podres que eu mencionei lá em cima? Desde o Partido Republicano Paulista, primeiro partido republicano fundado antes da proclamação, sabe-se que para assumir o maior poder executivo do país precisa esquecer qualquer rito religioso praticado na infância e fazer alianças com divinos, centro-divinos, centrão, centro-demoníacos e demoníacos. Com os extremistas de ambos os lados, seja de esquerda ou direita, seja de cima ou debaixo, não se mexe, nem se entra em acordo, apesar de serem essenciais para se tensionar o tabuleiro do jogo senão o dado pula.

Daí a existência do Collor, Sarney, Maluf e Renan, o que deixaria novamente em coma um militante do PT que teve um acidente vascular hemorrágico vendo o famoso debate Collor e Lula na Globo em 1989, e que acordou na primeira década do século XXI e deu uma zapeada na TV. Claro, seria um choque comparável a uma mulher que viu o beta HCG positivo na quinta semana e na sexta pariu. O sujeito era de esquerda ou extrema esquerda e acordou como centro-esquerda ou centrão, que é sinônimo de PMDB desde 1989, ou 1889, sei lá...
Sobre o mensalão, Presidenta, resumo-lhe este diálogo que escutei na ante-sala do Congresso nos idos de 2004 ao lado de Eduardo Jorge, antes de ele ser secretário de saúde dos demoníacos (DEM), quando lá estávamos balançando faixas do movimento médico sindical contra o desmonte do CPMF:
- Não tem como a gente falar das mesadas! (cochichando) É assim desde que o Congresso é Congresso.
- Última carta, ninguém tem outra ideia pra acabar com a reeleição.
Para mais informações sobre isso, especificamente sobre o envolvimento do Joaquim Barbosa, aconselho-a reler minha última carta que lhe enviei em fevereiro, especificamente o trecho sobre o fatídico dia em que o encontrei no Metropolitan de Nova Iorque e lá, dentro do museu, o que a deusa Osíris me revelou no Templo de Dendur. http://riocife.blogspot.com.br/2014/02/bom-dilma.html  
Segundo o profeta satírico alemão, Brecht, que também era médico:
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.
Claro que Brecht está certo e, por isso, aqui no Rio votei no Tarcísio, Chico e Freixo, claro que toda essa naturalidade do jogo político é um lixão que produz várias estamiras esquizolúcidas, que nos enlouquece, nos confunde, mas, em paralelo, vai-nos polindo a razão e trazendo a angústia da lucidez no meio da rua de uma humanidade engarrafada. Entretanto, não se pode negar que o eixo estruturante do desenvolvimento econômico adotado pelo PT nesses 12 anos de inclusão social e de distribuição de renda, que culminou, segundo a ONU, com a retirada do país do mapa da fome mundial, e com a agente comunitária de saúde numa turma de medicina, não é absolutamente nada natural comparado com todo o período republicano, monarquista e colonial brasileiro.
Em relação às denúncias do Globo, Folha, Estadão e Veja, presidenta, é só ler um pouco a história da imprensa nesse país e entender que os Diários Associados, o Correio da Manhã e o Diário de Notícias nas décadas de 40 e 50 e o próprio Globo na década de 60 sempre foram contra qualquer governo que ousasse uma mísera que seja distribuição de renda via políticas sociais, ou que garantisse mais direitos trabalhistas, muito menos que propusesse debates mais progressistas como reforma agrária, ou reforma política. Assim se deu com o último governo de Getúlio, com o de JK e de Jango. É só lembrar que apenas um jornal de alcance nacional foi contra o golpe militar, “A Última Hora”, de Samuel Wainer, que eu sei que na época a senhora morria de vontade de assinar, mas era muito centro-esquerda para uma VAR-Palmarense. Portanto, presidenta, ter esse batalhão monopolista e quase monárquico produzindo diariamente manchetes negativas quer no mínimo dizer que a senhora está no caminho certo.

Em contrapartida, os paradoxos não podem justificar os fins. Para além de um partido que cresceu tanto, desconfigurou-se, e perdeu sua unidade dando margem a aventureiros mercenários, eu não aguento mais essa insistência na indústria automobilísitica e a redução eterna do IPI, mesmo sabendo que isso sustentou a crise internacional.
Diversifique, pelo amor, o setor industrial, ou invente o impossível: “compre seu carro e leve de graça uma rua, uma avenida ou um viaduto. Monte seu próprio bairro.”
Da mesma forma, não mais suporto que as políticas de transferência de renda sirvam majoritariamente para o jovem comprar moto e se acidentar, TV led e se emburrecer, smartphone para entrar no Face, e diploma de facul privada que se multiplica por geração espontânea. Produzimos a nova classe rolezinho-funk-ostentação, que quando se descasca, falta o tutano. As 23 milhões de carteiras assinadas, a amplidão do mercado interno, do consumo de massas, o aumento sustentado do salário mínimo, que fez grande fatia da classe média lavar louça e passar um pano no banheiro, precisa ser acompanhado de um investimento muito maior que o do Templo de Salomão no salário e capacitação do professor público, do Infantil à Pós-Graduação. O querer aprender com a vida nos tempos de zap zap e Face precisa produzir um novo universo de criatividade e esforço didático para se crescer, curtir, compartilhar, e crescer novamente.
Voltando ao meu solitário passeio noturno em torno do Palácio da Alvorada, nós sabemos muito bem quem é o Underwood tupiniquim. Toda vez que vejo o Never falando em acabar com a corrupção, inflação, e que vai fazer o país crescer lembro do Frank sozinho no salão oval em pé por detrás da cadeira presidencial se entupindo de orgulho e dando as duas rápidas batidas na mesa com a mão direita. É bom colocar os pontos no U, como dizia meu bisavô alemão: compra de votos para reeleição de FHC e o superfaturamento de trens e metrôs em São Paulo são exemplos corrupção no PSDB, a inflação no governo FHC era maior que todos os 12 anos do PT, e a estabilidade da moeda com o Plano Real em 1994 se deu graças a um endividamento brutal da dívida interna, o que culminou com a quebra do Brasil por três vezes, tendo-se como “solução” o maior OFF Brasil que já se teve notícia com dezenas de privatizações a preço de paçoquita. O PSDB materializou literalmente a canção “Aluga-se”, de 1980, do também profeta Raul Seixas, que cantara a pedra: “É tudo free / Tem o Atlântico, tem vista pro mar / a Amazônia é o jardim do quintal”.  O que mais me entristece, presidenta, é a quantidade de gente estudada que embarca nessa farsa com o único argumento de “mudar”, como se o Never representasse o que há de mais progressista de projeto de sociedade para o futuro do país. Abre a boca para falar de meritocracia, quando sua grande meritocracia foi ter virado mórula, blástula, gástrula e por aí vai após o encontro das células germinativas dos seus pais.

Para um eventual desastre, já organizei meus anti-depressivos e benzodiazepínicos na farmacinha do banheiro, como um bom virginiano, e reservei passagem de ida para Montevidéu, nossa Paris dos anos 20. A senhora poderia finalmente realizar o desejo de, desculpa a intimidade, pegar o Mujica. Eu seria o médico dessa nova família, e todo domingo dançaríamos um Candombe e enviaríamos axés para Lula aguentar firme até 2018.
Mas, não! Definitivamente, never. Chacoalho a cuca com Marte passando em trígono com meu Mercúrio em leão na casa 7, e aperto forte a guia de Iemanjá. Rezo para que o Estado seja laico, graças aos homens.
Presidenta, segundo Bertoldo Brecha, “veeeenhaa!”. Contudo, venha sabendo que, além do baixo crescimento, serão anos que o governo federal, diante de um Congresso mais reacionário desde 64, se não tiver clareza de que lado está sambando, vai descer até o chão.
É manter mais ainda a atitude multilateral na política externa, porque se aliar à cadeia produtiva global é copiar o fracasso mexicano e voltar à cartilha do FMI. É ter raça para baixar a Selic e investir na indústria nacional com sustentabilidade energética, sem medo da inflação, e longe dessa aberração de deixar o Banco Central “independente” nas mãos dos bancos privados. É fazer mágica com os estados e municípios para elevar a qualidade da saúde e educação sem privatizar. É desfivelar o cinto do Centrão e chegar mais perto da base e dos movimentos sociais. É fazer com que eu não consiga mais pagar minha diarista e passe o pano no chão do meu banheiro, é lotar um A330 de empregadas domésticas e pedreiros rumo à Fernando de Noronha.
Mas qualquer cuidado é muito pouco, vi na TV agora mesmo a senhora passando mal numa entrevista e dizendo que foi “pressão baixa”. Na verdade, foi um piti, um faimizim, uma bilora. Receito-lhe sal grosso no bolso do taileur, parar de assistir House of Cards, e ler todas as minhas cartas antigas para rir um pouquinho. Muito importante: nunca fixar o olhar no riso sardônico do adversário. Em vez de ele bater duas vezes a mão à mesa, por trás do riso ele dá duas trincadas na mandíbula para consumar o ato final. Mentalize: Underwood never.


Cordialmente,
Dr. Luiz



domingo, 24 de agosto de 2014

febre por dentro

                                  para Júlia Rocha

quando Celsius beija o Farenheit do meu desejo

me sinto inteiro, quente, maneiro

38 é quase minha idade e por maturidade

minha velhice vira bebê

me sinto prenho e mantenho uma chama

de delícia nas minhas entranhas

nada do que é pouco me sacia

e nunca saberia que

grau tem a ver com quentura

39 ou 40

pra mim é par de sapato

porque tudo o que me esquenta é doçura

e nem você de cima do seu salto

e do seu sentimento

perceberá de leve que agora

o nada que eu sinto por fora

vem da febre de tudo que eu sinto por dentro

quarta-feira, 18 de junho de 2014

crédito cardíaco


nunca fui tão debitado pela sua paixão
sua ganância de me querer à vista
essa generosidade de não cobrar juros
do beijo meu
sempre me fez economizar afetos

num planejamento concreto
do que vai ser a longo prazo
me penalizo do risco
de sempre investir no acaso
não sei se no fundo dos meus investimentos
nisso tudo
 a bolsa que eu trago
de importante se descostura
e deixa cair a crise
sobre a qual assinamos concordata

sinto uma palpitação chata
que taquicardiza essa figura
chamada meu coração
rogo para que o déficit coronariano
cicatrize
e no superávit da minha ilusão
você volte para os braços da usura
e que o nosso produto interno seja bruto
uma tremenda exportação de prazeres
e tudo que for importado seja sem tributo
vinho, queijo, pão

e este ar que me falta?
essa inflação de O2, de nós dois
essa economia de dizeres
que me ama
tudo isso interroga a pressão
dos meus investidores arteriais

não serão os meus ais
que penalizarão o nosso ato

mas se o meu débito for perdoado
um largo crédito cardíaco
será dilatado sem juros
cá dentro do peito
e tudo que me é de direito
será socializado
 e o nosso amor será considerado
estado

terça-feira, 4 de março de 2014

Michael Isabel

Eu tinha tudo pra assinar meu login de @chato no carnaval do Rio, fazer um instagram blasé para qualquer programa. Ah vou não, quero não, posso não... Passar carnaval longe de Recife, mesmo sendo um consciente descansar na Patagônia, é de se fazer chorar por dentro para qualquer recifense, até para os que não bebem.
Entretanto, após um sábado de bloquinhos enfadonhos nas proximidades do Centro do Rio, recebo um convite de conhecer um bloco novo no meu quente e cervejeiro bairro de Vila Isabel. Chato por chato é melhor ser chato a pé, em vez de se implorar por táxis vazios em cada esquina. Assim como morar perto do trabalho: há sempre uns 15 minutos embaixo do seu travesseiro. Por isso, sabotei, um pouquinho só, o começo do domingo do carnaval da minha mulher que, por eu estar chato, chata estava. O Ministério da Saúde se diverte: Chatice contamina e pode virar epidemia. Ao se chatear, como médico e místico, recomendo-lhe se desenchatear o mais rápido possível com exercícios introvertidos de mantra – como lavar a pliha de louças da farra da véspera, banho frio, duas doses de qualquer garrafa, ou 45 min de exercício aeróbico, mantendo-se uma frequência cardíaca maior que 100. Senão... senão pode se cair em esquecimentos de chaves, carteiras e celulares, pequenos furtos e ódios exacerbados num trânsito nem tão engarrafado assim.
Chegando à praça Barão de Drummond, vejo uma instalação diferente do dia anterior de carnaval em que para se ouvir os dois saxes e o trombone teria que se desligar a abafada caixa amplificada da guitarra do Noites do Norte (aliás, a ideia pega que nem virose e é claro que eu preciso frequentar a festa de vocês, que se enche com as pérolas do Pará). Na Praça de Vila Isabel, o Barão de Drummond estava com headphone Bose Noise-Canceling, ou seja, dava ótimo para ouvir os agudos do baixo com uma cerveja na mão num lugar aberto. E para não bastar estavam tocando Smoothie Criminal na base do Morro dos Macacos acompanhados de uma bateria de escola de samba, praticamente uma UPP Social.
Teatrais, com um desejo gigante de se fazer aquele show, a felicidade transbordava do palco, causando uma enchente numa plateia que não parava de gritar “Aaow!”. O Bloco Thriller Elétrico é o melhor do carnaval do Rio 14, um show pão quente manteiga com sal derretida, interativo, irreverentemente clássico, que instigou uma plateia que não se acotovelava, e tudo isso embaixo de um céu cinza que escondia o feroz reluzente do verão carioca.
Dois homens e uma mulher conduziam a voz amparada por uma banda que incluía metais e um teclado daqueles com efeitos que cheiram a capa de vinil. Um cantor com agudos tipo Gal e sósias dançantes do Michael, que já antes eram fãs do rei do pop e frequentavam paramentados os shows da banda, e que foram convidados a participar do elenco, enfeitavam o topo do bolo. Houve até um divertido concurso de Moonwalker em que uma olindense com sombrinha na mão e elegância nos pés representou o carnaval de Pernambuco e ficou em segundo lugar graças aos meus “Aaow!” de torcida na plateia.
Acho que Noel Rosa gostaria de conhecer o Michael, ambos eram muito originais e muito estranhos. Tem uma música de Noel, A.b.surdo, a qual acredito que poderia rolar uma versão jacksoniana bem engraçada. Assim como Billie Jean poderia sincopar num samba da década de 30. Eu adoro os dois, tanto que já fiz Noel no teatro e Michael num show em 87 em homenagem ao Dia das Crianças na quadra lotada do ginásio no Colégio Santa Maria em Recife. Tinha 9 anos, estava morrendo de medo e dancei o Bad com uma roupa de couro preto e detalhes de metal, cabelo em gel e uma maquiagem expressionista. Minha turma de 2ª- série tanto gostou que ficou me jogando pro alto, enquanto eu tentava me livrar para ver o próximo número: a colega Gildinha, pela qual todos eram apaixonados, desfilando “Like a Virgin” fantasiada de Madonna.

O Bloco Thriller Elétrico foi o Dia das Crianças Grandes, deixei de ser chato, comecei a perceber que existe carnaval fora da vida de Recife, e só não me candidatei ao concurso Moonwalker pois desde 87 não ensaiava, estava sem meias e o chão não era liso. Enfim, “Aaow!”, à espera das oficinas do bloco para o carnaval que vem.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Bom Dilma!

Uma carta sempre pode falhar ao seu destino.
(Jacques Derrida)
Mas mesmo assim precisa ser escrita.
(eu mesmo)


Desde julho que não lhe mando cartas, como frisei havia aderido aos Cypherpunks do Assange e Snowden. Tive que sair do Face, do Google e cancelar meu Smiles platinum. Havia voltado, inclusive, ao stupid phone. No entanto, descobri pelo DSM V, o mais novo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que sofro de IAD, Internet Addiction Disorder, e, obviamente, de muita saudade de me comunicar com a senhora.
Consegui um afastamento da Clínica da Família no Rio, onde trabalho como médico, devido à enfermidade. Estava impraticável. Quando chegava próximo ao acolhimento para falar com um agente comunitário de saúde, no meio daquele oceano de gente, a tela do seu computador emitia as ondas azuis do Face, hipnotizava-me por alguns minutos e não conseguia desgrudar o olho até o agente correr toda a extensão da sua timeline. Podiam gritar “ô, doutor!” a tarde inteira que eu não saía do transe azul. Às vezes – confessarei só para a senhora – quando a geladeira da família dinossauro se abria, ou seja, quando o bicho comia na demanda espontânea, eu fingia uma enorme necessidade de banheiro e corria para a sala dos agentes. O bar dos bêbados, o pico do surfista, o banquete dos diabéticos, para mim, com IAD, a sala do paraíso. Todos os 10, 15 computadores abertos no Face. Numa dessas, a gerente me achou e perguntou se eu iria demorar para voltar ao atendimento, respondi: “curto, mas não comento”. Recebi a licença no mesmo dia e descobri que na New York University possui um grupo de pesquisa testando drogas para esse tipo de transtorno.

O que fiz? Vim para Lower East Side passar o fim de ano e me servir de cobaia. Há males que vem de trem, no meu caso vim de TAM, poltrona sardinha e atendimento carioca, ou seja, “por favor... Já foi.” Todavia, me diga, como estavam as coisas aí na Bahia no reveillon? Calor? Aqui está menos 3, umidade 50% e parcialmente nublado. O Abominável Homem das Neves passou por aqui, destruiu tudo de branco. Enquanto aí feministas fazem toplessaço, se eu fosse a senhora lá na base naval de Aratu faria um roupaçasso, pois topless é coisa de patricinha. Daria dia de folga para os seguranças, e paf! Roupaçasso presidencial. Soube que a senhora anda lendo Getúlio, do Lira Neto, mas lhe aconselho fortemente a trocá-lo pelo clássico 1984, do George Orwell. A senhora vai ficar mais orgulhosa do Itamaraty ter cancelado sua vinda para cá em outubro passado. Sei que a senhora não leu quando jovem, pois se tratava de uma literatura pelega. Quem diria?! O Estado totalitário que Orwell pintou sob o comando do Partido Interno não é de esquerda, longe disso, o seu aspecto materializou-se no país mais pelego do planeta, Here! O pior é que a diferença com a realidade atual ainda é mais absurda. Na ficção, a teletela é o olho do Estado nas vidas privadas dos cidadãos, sendo que é chata, com conteúdo e design patriota e careta, e agora temos a internet e o seu admirável novo mundo, e é justamente por essa beleza que somos fisgados, justamente por essa isca de sociabilidade, compartilhamento e rapidez na troca de informações. Para eles hoje em dia é mole, presidenta, só jogar a isca azul. Eu tentei, presidenta, juro que tentei, mas o DSM V foi maior que eu. Não sei se Winston, o protagonista do livro, também conseguiria resistir ao Face, a senhora eu tenho certeza, quem aguenta Sarney, Maluf e Renan, possui nervos de aço inoxidável, mas aí seria outra ficção, estilo Robocop.

Já que a senhora não veio a Nova Iorque, pintarei um pouco da cidade. Se Descartes, tivesse vivido por aqui diria: “Consumo, logo existo.” Se você tiver um dinheiro, ouvirá “enjoy!” em restaurantes, caso não tenha, plante talento e vá tocar no metro ou fazer teatro de rua. Ninguém ali está de bobeira, asiáticos, americanos, africanos e europeus estão ali para serem “the king of the Hill, the top of the heap”, como diz a canção. E aí chama o Tim Maia, porque vale tudo, principalmente homem com homem e mulher com mulher. Do Central Park para baixo tudo é prafrentex. Não é por acaso que cineastas gostam de filmar por aqui, economizam dinheiro com figurante e figurinista, sair na rua sem acessórios é praticamente ilegal. Gravatas borboleta, chapéus, suspensório, óculos, jaquetas, além de tatoos, cabeleiras, piercing, e todas as roupas da vogue. A senhora poderia inaugurar o transado vestido que comprou na África do Sul durante o funeral de Mandela, ou bancar um roupaçasso no Great Lawn do Central Park, seria mais uma latinoamericana exotic, pero sin perder la ternura jamás. Por aqui a senhora é um equilíbrio entre Chavez e Mujica, gosta de Cuba, mas é pop, porém nada de propaganda gay anti-aids que ofenda a bancada evangélica, muito menos legalização da erva de Feliciano, quer dizer, do diabo. A senhora, presidenta, aqui em Manhattan é uma estampa de Che pintada por Warhol.

Falando em artista, ontem eu estava no Met, o Metropolitan, o que é aquilo, né? A propaganda revela o que representa: “One MET, Many Worlds”. Bonito, né? Apesar de todos saberem que é “Many (robbed) Worlds”. Para entrar, você escolhe o preço que quer pagar, dei 1 dólar. O atendente falou que estava fazendo uma pesquisa e queria saber de onde eu era, fez uma chinfra, achando que eu iria me envergonhar, finquei firme o pensamento na senhora e falei com um riso escondido no canto da boca: “Brazil, with proud.”

Uma maquete encontrada no Egito há mais de 3 mil anos, em ótimo estado, mostrava o óbvio: a humanidade, desde o Egito, sempre comeu pão, escreveu e tomou cerveja. Pois bem, no meio dessa constatação de Amon-Rá, quem encontro ao meu lado? Joaquim Barboza de capuz vermelho, tinha vindo de Paris só para revisitar o Met. Enquanto ele ultrapassava o Templo de Dendur, juro que vi a deusa Osiris lhe oferecer uma taça, de onde saíram hieróglifos esfumaçantes, os quais pela ondulação, fundiram-se em letras latinas, talvez pelo fato do Templo ter sido construído pelos romanos, mas o que interessa é que consegui ler: “Fecit illud in Lula”.
Tive que sair do museu e me embrenhar no Central Park, quase cometi um roupaçasso em pleno inverno cruel de tanto atordoamento. Precisava de um Starbucks para poder entrar no Google Tradutor, que diachos de sinal era aquele transmitido de Osiris diretamente para Joaquim?
Depois de rodopiar por gramas brancas, caí no West Side e entrei no Zabar`s, um restaurante judeu. Pedi a senha do Wi-Fi, teria que consumir algo, claro. Enquanto devorava um cookie kosher, copiei a frase que li, 2 L em illud, 2 L em illud, vinha repetindo sobre as gramas brancas. Puf!: “Ele fez isso pelo Lula”. Oxalá, Osíris! Presidenta, a senhora acredita nisso? Acredita em algo?
Peguei um metrô, óbvio que errei a linha, eu precisava de um Face, comecei a sofrer abstinência, não queria ligar para o meu pesquisador psiquiatra. Invadi o Jules, bar de jazz na St Mark Place, a rua dos beatniks e de tudo mais um pouco, entornei uma dose do uísque mais barato e, como não tinha um rolo de telex e uma máquina de escrever, assumi o contrabaixo do set que iria começar em pouco tempo. O instrumento estava obviamente desplugado, mas os gatos pingados que estavam ali ouviram um brasileiro em abstinência de IAD cantando “Lula Lá” em ritmo de jazz, e com scats. Eu não estava bem, presidenta.

Agora, mais calmo, após alguns tablets e divãs, acesso a GloboNews e percebo que Orwell realmente é um profeta, Caio não jogou o rojão e é evidente que possui ligação com Freixo desde que nasceu. A questão é: por que ele assumiu o crime? Quem está por trás disso? Quem quer garantir a paz do apito nos gramados da Copa? Como será essa peleja? Justiceiros no ataque, a milícia na defesa, e o Cabral de helicóptero filmando tudo? Paes, é claro, como cobrador de ônibus para garantir a tarifa. Quem editará as imagens que Santiago gravou? Vejo tudo azul, presidenta, a neve azul, o prédio azul, a senhora própria está um azul smurfete, o mundo está azul, e Mark Zuckerberg acabou de passar pela minha janela vestido de Amon Rá azul. Algo me diz que ser cobaia do New York University não está com nada. Volto amanhã. De TAM!
tô tan-tan, presidenta, você não, né?
Cordialmente,
Dr. Luiz


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

carta aos residentes da primeira turma de Medicina de Família e Comunidade da Prefeitura do Rio

Rio, 1 de fevereiro de 2014

Já é.  D. Maria do Carmo foi atendida pelo menos uma vez por semana, ontem voltou novamente, a menina Yasmyn trouxe outra vez um TIG positivo, e Vitória, a da internação, sobreviveu e já teve dengue. Seu Romualdo recebeu alta da tuberculose, será que foi registrado no livro?
O grupo de gestantes vingou, a enfermeira tomou a frente, mas aquele outro de hipertensos e diabéticos... quem manda fazer grupo de hipertensos? Glorinha, da associação comunitária, mandou lembranças, o pastor também.
D. Conceição, que começamos a insulina, está morrendo de saudade de vocês, encheu os olhos d’ água, até a barraqueira Keylane deixou escapar um descontentamento, mas logo emendou: “mas a gente vai ficar sem médico até quando, hein? Olha lá!” Seu Orlando, aquele velhinho simpático, deixou-lhes presentes.  Aquela figura, D. Antonia, não voltou a fumar, entrou na dança de salão e está paquerando Seu Jorge, aquele quietinho, caladinho.
A ferida de Seu Gilberto fechou, mas continuamos sem dersane. Lembra a Stephanny, sua primeira paciente do DIU? Pediu para tirar, casou de novo, está morando longe. Já é.
Técnicos de enfermagem e ACS, cadê eles aqui?, mesmo depois das festinhas de despedida, não param de lastimar suas ausências, alertam todos os dias para escolhermos os próximos residentes que entrarão, como se pudéssemos. Claro que tem aquele e aquela que comemoram no seu íntimo discretamente, senão seria novela de Manoel Carlos. Longe disso, enquadramo-nos melhor num set com um enredo realista, beirando o naturalista.
Vocês são os filhos mais velhos, com todas as suas dores e delícias, sei como é porque também fui da primeira turma de uma residência, é como se a gente amadurecesse em acetileno, em panela de pressão, nossas lentes ficam mais grossas para enxergar as deficiências e as virtudes, sentimos um misto de sensação de cuidar da casa, mas também de quebrá-la por inteiro, atear fogo e gritar “sou Zé Pequeno, porra!”. No entanto, fico muito feliz que alguns se aventurarão na dificílima tarefa da preceptoria, na qual precisarão, além de se reinventar, alcançar os poderes de The Flash e do Multi-Homem dos Impossíveis, Hanna Barbera, lembram? Pois bem, vocês sairão de R2 para P1, era assim que o saudoso Armando nos chamava.
Por mais piegas que possa parecer, é verdade que fizemos história, aos trancos e barrancos, verdadeiros barrancos, tentamos melhorar a qualidade da assistência da atenção primária prestada no município. Digo uma coisa para vocês, não foi fácil para ninguém, nós, os P1s, também somos os filhos mais velhos, portanto também compartilhamos dos sentimentos do Zé Pequeno, além disso, trazemos nossos vícios de conduta médica e aprendemos muita coisa sem consultar previamente o livro para saber se era assim que se fazia. E tome Dynamed, Uptodate, Nice, AAFP, os bons capítulos do Tratado e do Duncan, além do próprio Duncan ambulante. E como dar conta disso com duas equipes, mais de quatro mil pessoas para cada uma, quatro residentes, negociações com gerentes e coordenadores? Tome natação, análise, alpinismo, bicicleta, guitarra, bateria, cerveja e violoncelo.
Apesar do Euract, dos cursos do pessoal do Conceição, das trocas de experiências com todo o grupo de Santa Catarina e Paraná, cada aula, espaço teórico era repensado. Como vamos avaliá-los? Antes disso, como reconhecer em cada um os potenciais e as deficiências? Como fazer um feedback com gentileza? Como cobrar uma mudança de atitude naquilo que se repete? Por que não estudaram? E por que eu não estudei? E vamos aprender PBI, como realizar a amada e odiada metodologia de aula do amigo de Armando. E mais PBI e as intermináveis aulas de revisões clínicas com Adelson. Enfim, se extrapolamos os limites da cobrança e da ansiedade, é porque estávamos realmente ansiosos.
Além de tudo isso e mais um pouco, a implantação da residência foi meio big bang dentro das Unidades, tendo como consequências cicatrizes que até hoje tem sempre um para espetar. Então o começo foi explosão, todos arremessados, tentando recolher os estilhaços ainda no ar. Agora, apesar de estarmos ainda num universo em expansão, tentamos navegar a Enterprise, mas daqui a um mês teremos outra batalha e se chama número 100.
O que teremos para amanhã? Coragem, podemos sim melhorar a cobertura, diminuir a quantidade de gente por equipe, pensar num melhor modelo público para APS, garantir espaços mais qualificados para as próprias pessoas atendidas refletirem e decidirem o que fazer para melhorar a demanda, a demora e a falta de esperança. Daqui a três anos, milhares de médicos recém-formados farão um novo tipo de residência, que se nós não ajudarmos a construir, a APS brasileira ficará muito chateada.
O SUS com 25 anos é um R1 que vai entrar agora na próxima turma, será nosso colega, então, por que não um “vem cá, SUS, vamos ali tomar uma cerveja”?
Corajosos filhos mais velhos, voai! Olho pra frente, o GPS? Esqueçam, quem faz o software somos nós, e precisa ser livre e compartilhado.
Beijos e abraços,
Alfredo de Oliveira Neto