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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Bom Dilma!

Uma carta sempre pode falhar ao seu destino.
(Jacques Derrida)
Mas mesmo assim precisa ser escrita.
(eu mesmo)


Desde julho que não lhe mando cartas, como frisei havia aderido aos Cypherpunks do Assange e Snowden. Tive que sair do Face, do Google e cancelar meu Smiles platinum. Havia voltado, inclusive, ao stupid phone. No entanto, descobri pelo DSM V, o mais novo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que sofro de IAD, Internet Addiction Disorder, e, obviamente, de muita saudade de me comunicar com a senhora.
Consegui um afastamento da Clínica da Família no Rio, onde trabalho como médico, devido à enfermidade. Estava impraticável. Quando chegava próximo ao acolhimento para falar com um agente comunitário de saúde, no meio daquele oceano de gente, a tela do seu computador emitia as ondas azuis do Face, hipnotizava-me por alguns minutos e não conseguia desgrudar o olho até o agente correr toda a extensão da sua timeline. Podiam gritar “ô, doutor!” a tarde inteira que eu não saía do transe azul. Às vezes – confessarei só para a senhora – quando a geladeira da família dinossauro se abria, ou seja, quando o bicho comia na demanda espontânea, eu fingia uma enorme necessidade de banheiro e corria para a sala dos agentes. O bar dos bêbados, o pico do surfista, o banquete dos diabéticos, para mim, com IAD, a sala do paraíso. Todos os 10, 15 computadores abertos no Face. Numa dessas, a gerente me achou e perguntou se eu iria demorar para voltar ao atendimento, respondi: “curto, mas não comento”. Recebi a licença no mesmo dia e descobri que na New York University possui um grupo de pesquisa testando drogas para esse tipo de transtorno.

O que fiz? Vim para Lower East Side passar o fim de ano e me servir de cobaia. Há males que vem de trem, no meu caso vim de TAM, poltrona sardinha e atendimento carioca, ou seja, “por favor... Já foi.” Todavia, me diga, como estavam as coisas aí na Bahia no reveillon? Calor? Aqui está menos 3, umidade 50% e parcialmente nublado. O Abominável Homem das Neves passou por aqui, destruiu tudo de branco. Enquanto aí feministas fazem toplessaço, se eu fosse a senhora lá na base naval de Aratu faria um roupaçasso, pois topless é coisa de patricinha. Daria dia de folga para os seguranças, e paf! Roupaçasso presidencial. Soube que a senhora anda lendo Getúlio, do Lira Neto, mas lhe aconselho fortemente a trocá-lo pelo clássico 1984, do George Orwell. A senhora vai ficar mais orgulhosa do Itamaraty ter cancelado sua vinda para cá em outubro passado. Sei que a senhora não leu quando jovem, pois se tratava de uma literatura pelega. Quem diria?! O Estado totalitário que Orwell pintou sob o comando do Partido Interno não é de esquerda, longe disso, o seu aspecto materializou-se no país mais pelego do planeta, Here! O pior é que a diferença com a realidade atual ainda é mais absurda. Na ficção, a teletela é o olho do Estado nas vidas privadas dos cidadãos, sendo que é chata, com conteúdo e design patriota e careta, e agora temos a internet e o seu admirável novo mundo, e é justamente por essa beleza que somos fisgados, justamente por essa isca de sociabilidade, compartilhamento e rapidez na troca de informações. Para eles hoje em dia é mole, presidenta, só jogar a isca azul. Eu tentei, presidenta, juro que tentei, mas o DSM V foi maior que eu. Não sei se Winston, o protagonista do livro, também conseguiria resistir ao Face, a senhora eu tenho certeza, quem aguenta Sarney, Maluf e Renan, possui nervos de aço inoxidável, mas aí seria outra ficção, estilo Robocop.

Já que a senhora não veio a Nova Iorque, pintarei um pouco da cidade. Se Descartes, tivesse vivido por aqui diria: “Consumo, logo existo.” Se você tiver um dinheiro, ouvirá “enjoy!” em restaurantes, caso não tenha, plante talento e vá tocar no metro ou fazer teatro de rua. Ninguém ali está de bobeira, asiáticos, americanos, africanos e europeus estão ali para serem “the king of the Hill, the top of the heap”, como diz a canção. E aí chama o Tim Maia, porque vale tudo, principalmente homem com homem e mulher com mulher. Do Central Park para baixo tudo é prafrentex. Não é por acaso que cineastas gostam de filmar por aqui, economizam dinheiro com figurante e figurinista, sair na rua sem acessórios é praticamente ilegal. Gravatas borboleta, chapéus, suspensório, óculos, jaquetas, além de tatoos, cabeleiras, piercing, e todas as roupas da vogue. A senhora poderia inaugurar o transado vestido que comprou na África do Sul durante o funeral de Mandela, ou bancar um roupaçasso no Great Lawn do Central Park, seria mais uma latinoamericana exotic, pero sin perder la ternura jamás. Por aqui a senhora é um equilíbrio entre Chavez e Mujica, gosta de Cuba, mas é pop, porém nada de propaganda gay anti-aids que ofenda a bancada evangélica, muito menos legalização da erva de Feliciano, quer dizer, do diabo. A senhora, presidenta, aqui em Manhattan é uma estampa de Che pintada por Warhol.

Falando em artista, ontem eu estava no Met, o Metropolitan, o que é aquilo, né? A propaganda revela o que representa: “One MET, Many Worlds”. Bonito, né? Apesar de todos saberem que é “Many (robbed) Worlds”. Para entrar, você escolhe o preço que quer pagar, dei 1 dólar. O atendente falou que estava fazendo uma pesquisa e queria saber de onde eu era, fez uma chinfra, achando que eu iria me envergonhar, finquei firme o pensamento na senhora e falei com um riso escondido no canto da boca: “Brazil, with proud.”

Uma maquete encontrada no Egito há mais de 3 mil anos, em ótimo estado, mostrava o óbvio: a humanidade, desde o Egito, sempre comeu pão, escreveu e tomou cerveja. Pois bem, no meio dessa constatação de Amon-Rá, quem encontro ao meu lado? Joaquim Barboza de capuz vermelho, tinha vindo de Paris só para revisitar o Met. Enquanto ele ultrapassava o Templo de Dendur, juro que vi a deusa Osiris lhe oferecer uma taça, de onde saíram hieróglifos esfumaçantes, os quais pela ondulação, fundiram-se em letras latinas, talvez pelo fato do Templo ter sido construído pelos romanos, mas o que interessa é que consegui ler: “Fecit illud in Lula”.
Tive que sair do museu e me embrenhar no Central Park, quase cometi um roupaçasso em pleno inverno cruel de tanto atordoamento. Precisava de um Starbucks para poder entrar no Google Tradutor, que diachos de sinal era aquele transmitido de Osiris diretamente para Joaquim?
Depois de rodopiar por gramas brancas, caí no West Side e entrei no Zabar`s, um restaurante judeu. Pedi a senha do Wi-Fi, teria que consumir algo, claro. Enquanto devorava um cookie kosher, copiei a frase que li, 2 L em illud, 2 L em illud, vinha repetindo sobre as gramas brancas. Puf!: “Ele fez isso pelo Lula”. Oxalá, Osíris! Presidenta, a senhora acredita nisso? Acredita em algo?
Peguei um metrô, óbvio que errei a linha, eu precisava de um Face, comecei a sofrer abstinência, não queria ligar para o meu pesquisador psiquiatra. Invadi o Jules, bar de jazz na St Mark Place, a rua dos beatniks e de tudo mais um pouco, entornei uma dose do uísque mais barato e, como não tinha um rolo de telex e uma máquina de escrever, assumi o contrabaixo do set que iria começar em pouco tempo. O instrumento estava obviamente desplugado, mas os gatos pingados que estavam ali ouviram um brasileiro em abstinência de IAD cantando “Lula Lá” em ritmo de jazz, e com scats. Eu não estava bem, presidenta.

Agora, mais calmo, após alguns tablets e divãs, acesso a GloboNews e percebo que Orwell realmente é um profeta, Caio não jogou o rojão e é evidente que possui ligação com Freixo desde que nasceu. A questão é: por que ele assumiu o crime? Quem está por trás disso? Quem quer garantir a paz do apito nos gramados da Copa? Como será essa peleja? Justiceiros no ataque, a milícia na defesa, e o Cabral de helicóptero filmando tudo? Paes, é claro, como cobrador de ônibus para garantir a tarifa. Quem editará as imagens que Santiago gravou? Vejo tudo azul, presidenta, a neve azul, o prédio azul, a senhora própria está um azul smurfete, o mundo está azul, e Mark Zuckerberg acabou de passar pela minha janela vestido de Amon Rá azul. Algo me diz que ser cobaia do New York University não está com nada. Volto amanhã. De TAM!
tô tan-tan, presidenta, você não, né?
Cordialmente,
Dr. Luiz


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

carta aos residentes da primeira turma de Medicina de Família e Comunidade da Prefeitura do Rio

Rio, 1 de fevereiro de 2014

Já é.  D. Maria do Carmo foi atendida pelo menos uma vez por semana, ontem voltou novamente, a menina Yasmyn trouxe outra vez um TIG positivo, e Vitória, a da internação, sobreviveu e já teve dengue. Seu Romualdo recebeu alta da tuberculose, será que foi registrado no livro?
O grupo de gestantes vingou, a enfermeira tomou a frente, mas aquele outro de hipertensos e diabéticos... quem manda fazer grupo de hipertensos? Glorinha, da associação comunitária, mandou lembranças, o pastor também.
D. Conceição, que começamos a insulina, está morrendo de saudade de vocês, encheu os olhos d’ água, até a barraqueira Keylane deixou escapar um descontentamento, mas logo emendou: “mas a gente vai ficar sem médico até quando, hein? Olha lá!” Seu Orlando, aquele velhinho simpático, deixou-lhes presentes.  Aquela figura, D. Antonia, não voltou a fumar, entrou na dança de salão e está paquerando Seu Jorge, aquele quietinho, caladinho.
A ferida de Seu Gilberto fechou, mas continuamos sem dersane. Lembra a Stephanny, sua primeira paciente do DIU? Pediu para tirar, casou de novo, está morando longe. Já é.
Técnicos de enfermagem e ACS, cadê eles aqui?, mesmo depois das festinhas de despedida, não param de lastimar suas ausências, alertam todos os dias para escolhermos os próximos residentes que entrarão, como se pudéssemos. Claro que tem aquele e aquela que comemoram no seu íntimo discretamente, senão seria novela de Manoel Carlos. Longe disso, enquadramo-nos melhor num set com um enredo realista, beirando o naturalista.
Vocês são os filhos mais velhos, com todas as suas dores e delícias, sei como é porque também fui da primeira turma de uma residência, é como se a gente amadurecesse em acetileno, em panela de pressão, nossas lentes ficam mais grossas para enxergar as deficiências e as virtudes, sentimos um misto de sensação de cuidar da casa, mas também de quebrá-la por inteiro, atear fogo e gritar “sou Zé Pequeno, porra!”. No entanto, fico muito feliz que alguns se aventurarão na dificílima tarefa da preceptoria, na qual precisarão, além de se reinventar, alcançar os poderes de The Flash e do Multi-Homem dos Impossíveis, Hanna Barbera, lembram? Pois bem, vocês sairão de R2 para P1, era assim que o saudoso Armando nos chamava.
Por mais piegas que possa parecer, é verdade que fizemos história, aos trancos e barrancos, verdadeiros barrancos, tentamos melhorar a qualidade da assistência da atenção primária prestada no município. Digo uma coisa para vocês, não foi fácil para ninguém, nós, os P1s, também somos os filhos mais velhos, portanto também compartilhamos dos sentimentos do Zé Pequeno, além disso, trazemos nossos vícios de conduta médica e aprendemos muita coisa sem consultar previamente o livro para saber se era assim que se fazia. E tome Dynamed, Uptodate, Nice, AAFP, os bons capítulos do Tratado e do Duncan, além do próprio Duncan ambulante. E como dar conta disso com duas equipes, mais de quatro mil pessoas para cada uma, quatro residentes, negociações com gerentes e coordenadores? Tome natação, análise, alpinismo, bicicleta, guitarra, bateria, cerveja e violoncelo.
Apesar do Euract, dos cursos do pessoal do Conceição, das trocas de experiências com todo o grupo de Santa Catarina e Paraná, cada aula, espaço teórico era repensado. Como vamos avaliá-los? Antes disso, como reconhecer em cada um os potenciais e as deficiências? Como fazer um feedback com gentileza? Como cobrar uma mudança de atitude naquilo que se repete? Por que não estudaram? E por que eu não estudei? E vamos aprender PBI, como realizar a amada e odiada metodologia de aula do amigo de Armando. E mais PBI e as intermináveis aulas de revisões clínicas com Adelson. Enfim, se extrapolamos os limites da cobrança e da ansiedade, é porque estávamos realmente ansiosos.
Além de tudo isso e mais um pouco, a implantação da residência foi meio big bang dentro das Unidades, tendo como consequências cicatrizes que até hoje tem sempre um para espetar. Então o começo foi explosão, todos arremessados, tentando recolher os estilhaços ainda no ar. Agora, apesar de estarmos ainda num universo em expansão, tentamos navegar a Enterprise, mas daqui a um mês teremos outra batalha e se chama número 100.
O que teremos para amanhã? Coragem, podemos sim melhorar a cobertura, diminuir a quantidade de gente por equipe, pensar num melhor modelo público para APS, garantir espaços mais qualificados para as próprias pessoas atendidas refletirem e decidirem o que fazer para melhorar a demanda, a demora e a falta de esperança. Daqui a três anos, milhares de médicos recém-formados farão um novo tipo de residência, que se nós não ajudarmos a construir, a APS brasileira ficará muito chateada.
O SUS com 25 anos é um R1 que vai entrar agora na próxima turma, será nosso colega, então, por que não um “vem cá, SUS, vamos ali tomar uma cerveja”?
Corajosos filhos mais velhos, voai! Olho pra frente, o GPS? Esqueçam, quem faz o software somos nós, e precisa ser livre e compartilhado.
Beijos e abraços,
Alfredo de Oliveira Neto