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sábado, 26 de agosto de 2017

carta para Tomás de um sábado qualquer

Porque hoje é sábado eu leria o conto Hills Like White Elephants, do Hemingway, só porque estou na fase pilhada com o autor em busca da macroeconomia do texto. Usaria o google tradutor a tiracolo para salvar palavras que desconheceria para usar em futuros poemas, leria pausadamente em voz alta, mas não muito, e quando estivesse em dúvida da pronúncia iria novamente ao Tradutor para ouvir a clareza de um sotaque padrão BBC / PBS. Tentaria o original no scribd onde geralmente acho tudo. Depois pegaria no violão I Fall in Love too Easily, não na versão Sinatra, mas do meu favorito Chet Baker naquele seu segundo disco de 56, e depois de muito treino gravaria no celular e enviaria para grupos de zap muito seletos pedindo para prestarem atenção na interpretação naquela passagem. Tudo muito chato virginiano, mas faria.

Porque hoje é sábado todas essas ações seriam acompanhadas pela minha única garrafa de vinho que tenho em casa, a Porca de Murça 2012, do Douro, uma mania familiar. Mestre Giba, seu avô materno, descobriu que esta "porquinha"conseguiu 90 pontos no Wine Expectator, não contamos para quase ninguém, e o Zona Sul, que o importa, parece não se importar com o preço.
Por fim, neste mesmo sábado, acabaria de ver no Netflix o documentário Empire of Dreams, sobre a primeira trilogia do Star Wars para ficar imaginando durante toda a semana: por que George Lucas insistiu profundamente num gênero fadado ao fracasso para a década de 70? O que faz com que pessoas como ele, Van Gogh, Freud, Cristo, Marx insistirem em temas e linguagens que todos os amigos mais próximos recomendam não mergulhar, alertam do fracasso, e eles persistem apesar de tudo e de todos? Será que ouvem vozes? Possuem alguma segurança sensitiva metafísica ou espiritual? Cristo foi claro em dizer que sim, mas e os outros?
Hemingway, Baker e Lucas que me perdoem, mas você, fiote, acordará em menos de 30 minutos e eu tenho uma lista de recomendação de zap de sua mãe para nada esquecer de como devo vesti-lo, alimentá-lo e armazenar suas mochilas. Chamarei um Uber e iremos nós dois rumo a um casamento no Catete.
Lá muito provavelmente irei fazê-lo rir de como um personagem tosco de um vídeo no youtube levanta a mão, como quem responde presença, durante a música "Old McDonald had a farm..." e você gargalhará. Eu não abri mão da "porquinha" e cantaremos juntos o seu pout pourri de canções, grande parte infantis, acharei graça quando esquecer alguns versos e você não. Curtirei ao máximo quando você começar O Mar, de Caymmi, imitando a minha tentativa de imitar o baiano no final da 1a estrofe, naquele grave extremo "é bonito...".

Tudo isso justamente porque hoje é sábado e Vinicius faz muita, muita falta neste Brasil careta e insuportável.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

carta para Tomás s/n

Fiote, são 4h35 e o galo canta em Paraty Mirim. Estou sentado no chão frio de inverno, encostado ao frigobar, único canto do quarto em que a fresta da luz do banheiro, com sua porta recostada, me permite iluminar o teclado do meu laptop. Viemos passar 3 dias no litoral sul fluminense no final de suas férias intermináveis.
Desde que você nasceu escrever é um ato de resistência, sempre me lembro de Hemingway, “você deve escrever como quem caça leões”. Na minha juventude interpretava esse conselho como se houvesse a necessidade de se estar nu emocionalmente diante do texto, quando todos os sentimentos primitivos de raiva, coragem, medo e amor são atirados no papel como tintas ao quadro e somente muito depois burilados na mais alta sofisticação racional. Acho que era isso ao que o americano-cubano se referia, mas também, e agora não tenho mais nenhuma dúvida, ao ato de resistência que é escrever em situações adversas tipo guerra, cárcere, caçadas na savana africana e filhos pequenos. Como diz uma colega professora da Uerj, “o que é mais forte, permanece”, e eu fico feliz em saber que escrever está em meu sistema nervoso autônomo, porém melancólico ao notar que, para conseguir um horário comercial reservado, muitos leões africanos precisarei abater.
Existem outras duas cartas para você ainda incompletas porque escrever não é igual a desenhar caracóis. Primeiro se ordena a ideia do texto na cabeça ou no papel, depois se joga as tintas do Hemingway, o que raramente acontece de uma só tacada, depois vem o superego e diz “que porcaria!”, aí você toma uma cerveja e acha o texto lindo, só depois, sem cerveja, você passa pela fase final chata de edição, que é geralmente esfoliante, e quando publica sente novamente aquela sensação de nudez e se pergunta por que mesmo eu preciso, com ou sem personagens, me expor a este ponto? Aí depois de vários ciclos desses, você se acostuma e relaxa parcialmente. Já o caracol que eu desenho para você é completamente intuitivo, colorido de afeto, sem amarras e sem leitores imaginários, como me alertava Raimundo Carrero, pousados em meu ombro lendo em streaming palavra por palavra. Ou seja, desenhar caracóis é muito mais legal.

Mas vamos ao ponto G desta carta: três dias atrás sua mãe e seu avô foram com você a Teresópolis e eu tive uma tarde e uma noite de férias depois de 2 anos e 2 meses, não por acaso a sua idade, no novo bairro onde moramos, o verdejante Jardim Botânico e isso se tornou simplesmente uma aventura. Rapidamente tracei o roteiro: 1) dormir (sempre!) ao começar qualquer roteiro, mas não muito, estipulei 1hora e cumpri; 2) almoçar de-va-gar, mastigar todas as superfícies internas e externas do bolo alimentar, fechar o olho e descobrir notas de erva doce no quiche de alho poró sem se preocupar com o turno da tarde de trabalho ou se você vai novamente subir em cima do sofá e mexer nas minhas caixinhas de som do home theater. Cachacinha grátis, sobremesa, café, spotify, twitter (zap, email e fb nem pensar), café novamente ; 3) nadar, ah, nadar... a natação é a nata da ação, três meses longe da piscina e minhas tubas auditivas repletas de muco e coronárias engarrafadas de ateroma; 4) cortar minha tufa com Bruno, um italiano de sotaque com quem converso sobre massas e leio notícias da Itália na sua revista da embaixada especial para imigrantes, o objetivo desta vez é acabar de ler a matéria da capa de um número de meses atrás sobre Antonio Patriota como novo embaixador em Roma, não me recrimine, calculo que terei um pouco de vergonha de garimpar no revisteiro junto a caras e contigos, não encontrar e ter de pedir a alguém; 5) por fim entrar no grupo de zap de amigos, não me distrair, e perguntar o que a noite do Rio de uma quarta-feira de julho me reserva.
Assim que você partiu, consegui, meio ansioso pelo porvir, dormir apenas 1h e iniciei a aventura almoçando no caríssimo restaurante a peso do bairro, o Nanquim. Como diminuí meu prato para 400g achei que valeria apesar dos pesares de ser professor da Uerj, mas isso deixa para outra carta, apertei o botão F, também outra carta. Lá é bom porque se você acertar na proteína vale. Neste dia o peixe era salmão, é bom você saber que hoje está banalizado, mas quando eu era pequeno este nórdico pisciano era um artigo importado de restaurante chique, salpiquei um molho teryaki. O ponto de cozimento e a qualidade do salmão e do molho estavam uma paleta colorida, mastiguei todas as superfícies. Claro que pedi uma “água da casa”, o botão F não é isento de recalques. Quero que você saiba que seu pai não tem frescura nenhuma com comida, quando trabalhava na Penha todos os médicos de família das redondezas repugnavam o meu hábito de comer em um restaurante bem baratinho ali perto do trilho do trem, se é para comer uma buchada de bode estamos aí, meu órgão de estresse não é o intestino, mas as vias aéreas superiores. E por isso a natação e, devidamente orientado pela minha otorrinolaringologista, Lúcia Joffily, a busca incessante pelo mar, mergulhar, surfar, esquiar, velejar... Apenas busca incessante mesmo.
A piscina do clube militar, sim, militar, é o único clube que dá para eu ir a pé e a piscina tem 25m, é limpa, aquecida e tem vista para o Corcovado, não me recrimine. Pois bem, a piscina do clube militar me dá sempre vontade de tirar uma foto e fazer um post tipo #natação #eumecuido #euconsegui, mas acho piegas pra cachorro qualquer coisa neste sentido e no máximo tiro uma foto e mando pra sua mãe, sem nenhum comentário.
Nadei como de costume, desde que você nasceu, meus 1000 metros que na minha cabeça é sempre a metragem necessária numa frequência irregular de treino para o grande retorno triunfal à época em que eu percorria 2km em 45 min. Como estava de férias por um dia, decidi conhecer a sauna do clube. Senti-me numa casa de banhos do início do século XX rodeado por Benjamin Constant e Floriano Peixoto, velhos barrigudos trajando apenas um modelito havaianas e toalha no ombro, nus, mal encarados, sem fixar o olhar, muito menos boa tarde, andando da sauna para a ducha, da ducha para as espreguiçadeiras que dão para a TV de LED sintonizada na Globo News. Para aperfeiçoar um clima positivista militar de direita, a longa matéria era sobre o vandalismo na Venezuela. Caço um diálogo entre um desses velhos e um jovem, único além de mim, sobre história militar e o quanto leis marciais implementadas nas guerras franco-prussianos foram importantes para diminuir a crueldade das guerras. Chamam carinhosamente uns aos outros de “oh, viado!” e, graças ao meu olhar clínico diagnostiquei alguns micropênis, mas me retive na oferta de qualquer consulta.

Vi uma porta no fundo do corredor “massagem e repouso – silêncio absoluto”, mas fiquei com medo de grunhir alto ao apertarem meus pontos gatilhos musculares e levar uma chinelada. Dei meia volta e flutuei, assim como em qualquer pós natação, rumo à tesoura do italiano. Aproveitei a longa lavagem morna por entre as madeixas de minha tufa, chateei-me como de costume de ter cortado além do desejado e tive vergonha de pedir o número da revista da embaixada. Pronto, havia cuidado da minha saúde e da minha beleza, o que fazer agora no início da noite deste bairro verdejante? O JB, meu filho, tem este ar ecobelofitness, e achei que seria uma frase compatível para a ocasião. Comprei uma Carta Capital e um jornal Globo, não me recrimine novamente, na minha banca predileta, esquina da rua JB com a Lopes Quintas. Eu adoro jornal, fui editor do jornal do diretório acadêmico na faculdade, fiz um projeto longo e criativo, que não saiu literalmente do papel, assim como inúmeros outros projetos mirabolantes que seu pai faz, chamado A Massa, um jornal tipo Pasquim para os dias atuais ainda na época de Recife, cheguei inclusive a juntar obviamente uma redação também quixotesca em algumas reuniões, meu vereador recifense Ivan Moraes Filho que o diga, enfim, desde que o Jornal do Brasil morreu e que a Globo atuou a plenos pulmões no golpe de 2016, decidi não mais comprar jornal aqui no Rio, mas às vezes a tentação é grande, eu adoro jornal e revista, não iniciei na leitura com livrinhos infantis. Na verdade mesmo, em matéria de literatura, eu sou um grande leitor de revistas, fui assinante da Fluir, Playboy, Veja (não me recrimine novamente, parei de assinar depois da capa do Stédile em 1999) e Continente Multicultural (hoje Continente). Lia tudo obsessivamente de cabo a rabo, muita saudade da era pré-internet em que a gente focava em um único objeto, sem o vício horripilante de checar zaps. E eu já achava revista uma fonte por demais distraidora, porém venerava ler economia, ver anúncios publicitários, misturados a ensaios inteligentes e resenhas de filme bom.

Então estava eu ali em frente à banca com uma noite à minha espera e não me contive, comprei o Globo, há outro detalhe, eu não aguentava mais a cara de recriminação do vendedor careca quando eu levava apenas uma Carta Capital. Fui caminhando com os folhetins embaixo do braço sem medo de ser chamado de coxinha ou mortadela rumo ao Belmonte. Não emborquei a Carta na mesa, deixei a capa para cima e abri em frente ao chopp o primeiro caderno do Globo para que todos vissem que se tratava ali de um homem sensato, analítico, que disseca as entrelinhas de qualquer órgão da imprensa independente dos interesses político-econômicos, mas não passava na real de um pai de filho pequeno hipomaníaco numa noite de férias. Meu filho, poucos prazeres na vida do seu pai se assemelham a ler no bar, ouvindo música com headphone bom e fazendo anotações de insights para projetos mirabolantes que não sairão do papel.
A dica para a noite foi Chorinho na Glória e Jazz na Praça Tiradentes com o alerta de estarem lotados. Prefiro ouvir todos os agudos e graves do álbum que escolher tomando um drinque no silêncio sepulcral da nossa sala da rua Faro. Mas aí veio uma dica que se encaixava perfeitamente com a vibe das mini-férias: um evento descolado que acontece apenas mensalmente no Parque Lage entre 19h e 22h. A carga do meu celular, e da minha música, daria exatamente para mais um chopp e para a caminhada até o Lage. Li meia matéria de capa da Carta sobre o Temer e seu pescoço de ouro, e menos da metade do primeiro caderno, ensacolei os folhetins junto à toalha e sunga molhada da natação e me senti nas férias da faculdade em Recife, quando pegava ônibus até o Centro lendo livro de poesia, transpassava a noite, e ia tomar uma saideira na praia de Boa Viagem no outro dia, mas quando se envelhece o tempo se comprime.
Arto Lindsay, uau, o cara que redescobriu Tom Zé junto com David Byrne, que já produziu Caetano, Marisa Monte e Orquestra Contemporânea de Olinda tocaria uma guitarra junto com um dj que esqueci o nome. Parque Lage é o verde humanas do JB, lá tem a Escola de Artes Visuais e todas aquelas exposições contemporâneas esquisitas. O que me pega lá é aquele tom sombrio da arquitetura apesar do pátio interno solar, acho que esse peso que sinto tem a ver com os velórios de Di Cavalcanti, que Glauber filmou e depois o próprio foi velado lá e obviamente também filmado. Sou fã do Glauber, portanto o que eu sinto lá é muito mais o peso da história do que possíveis assombrações do nobre e sua amante para quem a casa foi construída.

O show foi bem Escola de Artes Visuais, ininteligível, kitsch, barulhos altos de distorção em músicas sem melodias, loops com gritos e palmas, mas o lugar do show, uma varanda lateral da biblioteca, fiotão!, foi um achado: comecei a bolar o projeto de lançamento do disco do Empenha, uma banda que seu pai faz parte, bota muita fé e quer mudar o nome. Fui encher o saco do produtor do show, queria saber o passo a passo para conseguir a varanda. Ele disse: “o projeto tem que ser de arte contemporânea”, respondi: “minha banda possui muitos elementos de contemporaneidade”; “arte contemporânea é diferente de contemporaneidade”. Quando acabarmos de gravar o disco, irei de chapéu e óculos escuros carregando um livro de Bourriaud bem naturalmente.

Flutuei mais uma vez de volta para casa. Um meio sorriso intermitente ocupava minha fisionomia, tinha duas certezas, o dia tinha acabado antes de 23h, eu dormiria como nunca, mas antes eu precisaria escrever esta aventura. Desabei e nem uma palavra, por isso vim caçar leão nesta madrugada em Paraty Mirim onde além do galo o pavão emite barulhos quase humanos e o ganso bica quem chegar perto do ninho.