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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Medo Medieval: o conto do canto

A primeira vez que ouvi tiroteio de verdade no Rio foi numa madrugada no apê da Rua Gonzaga Bastos, Vila Isabel, que meu amigo Lucas Benevides, psiquiatra carioca que morava no Recife, me emprestou para uma temporada no Rio, a qual já dura 13 anos. Passei apenas seis meses, e foi naquela sala onde compus Medo Medieval, também na madrugada. Tinha acabado de ingressar no mestrado de Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da UERJ. Acordei de supetão e rolei para debaixo da cama. Era 2008.
O medo de andar pra cima e pra baixo, de trem e busão, plantão de São Gonçalo a Bangu, estava presente, mas não me ameaçava. Cheguei no início do pacto de paz, aos custos reais que desconhecemos até hoje, e que durou até a Copa de 14. Cabral, UPP, grandes eventos. O fato é que todo aquele Rio perigoso, que ouvimos no JN desde a década de 80, havia se tornado novamente aquele Rio pré-70. O sol, o sal e o mar, e aquela sensação de que o caos estava abafado e escondidinho debaixo do tapete. Perdi o medo, voltei inúmeras vezes no sono alcoólico, 433, queimando a parada para despertar no terminal. A passos lentos, 3 da madruga, da Praça Barão de Drumond à Gonzaga Bastos, o único pedestre, destemido, que nem nos tempos de Noel.
O mestrado era puxado, só dava para trabalhar como plantonista, passava horas lendo uma literatura que não tinha a menor aproximação prévia: ciências políticas, economia, sociologia, filosofia. Outra linguagem, outros sentidos para as palavras, dicionário do Bobbio a tiracolo, como se aprendesse uma outra língua. Para aliviar a barra, minha turma era sensacional, multidisciplinar e adorava um bar. Rimou.
Fizemos jornalzinho, cine-clube, seminário estudantil, muitos rolês. Buscávamos outra maneira de escrever para a área, expressão em outros formatos que não fosse algo maçante. Foi quando, numa madrugada da sala da Gonzaga Bastos, lendo A Dinâmica do Capitalismo, do Fernand Braudel, para apresentar numa avaliação de disciplina, pensei em fazer algo diferente.
No dia da avaliação estaria no Recife para o São João, então tive a ideia de enviar uma gravação, que a minha turma apresentaria ao vivo quando chegasse a minha vez. Como estava interessado na área da comunicação e saúde e iria trabalhar com rádio comunitária, inventei um programa de rádio em que tentava imitar as vozes de radialistas populares do Recife da minha infância. Escrevi um roteiro sobre a minha parte naquele livro e em outros da disciplina, tentando temperar com humor tipo Pasquim e Monty Phyton. No entanto, precisava de uma canção.
Estudei teoria musical e cursei 3 anos de teclado no final da infância e pré-adolescência, tocava Yesterday, La Cumparsita, Reality e Eu sei que vou te amar nos natais em família. Não era lounge, num determinado momento da noite minha mãe chamava todo mundo para o meu quarto, eu ensaiava para tal, palmas e plateia. Aos 14, a primeira banda com a galera do Colégio Santa Maria. Levei meu teclado para o quartinho na cobertura do meu primo. O meu tio nos chamava de Inimigos do Ritmo, mas o nome era The Primos. Achei conveniente a crítica e pedi um baixo para o meu pai, queria resolver esta lacuna. Giannini Slim Line preto. A banda durou dos 14 aos 19, nosso ápice foi tocar na formatura do 3o ano. Rock 60s, Beatles, Stones, Doors e Jovem Guarda. Na infância gostava tanto de Elvis que levava a foto dele para o cabeleireiro, tentava o topete e não conseguia, apelei para o gel, e logo ganhei o apelido de Tufa na escola.
O nome da banda era em homenagem a uma outra, Os Primos, cujo pai de um dos integrantes teve, também com o seus primos. nos anos 60 e que teve alguma repercussão, tocavam nos auditórios de TV e eram amigos do ritmo e da afinação. Desde então nunca abandonei o violão e os songbooks de Almir Chediak, entrei na faculdade mais MPB. E daí para se apaixonar pelos ritmos pernambucanos foi um pulo. Saí da faculdade de pandeiro na mão.
Até 2008 havia escrito apenas 4 canções, todas em parceria: um rockão em inglês, um samba ainda sem harmonia, um baião que veio de um poema e outro sambinha que já tem harmonia e experiência em shows e que gravarei em 22. A minha praia era literatura, poesia e crônica.
O livro de Braudel foca em como se deu a expansão da economia de mercado do final da Idade Média até fins do século XVIII, como foi que a expansão do capitalismo acabou subjugando e empobrecendo os camponeses autônomos da Idade Média que estavam fora dos limites dos mercados em ascensão: Veneza, Flandres, Ístria, Pérsia, China. No final das contas, é o que já sabemos, a acumulação inumerável de riquezas roubadas da América, África e Ásia a partir do século XV, eliminando qualquer possibilidade de vida autônoma que seja a par desse sistema. E mesmo depois da Peste, todas as guerras e pandemias, “a cidade não para, a cidade só cresce, o de cima sobe e o de baixo desce”.
A referência para compor veio da Califórnia, a música Alabama Song (Whiskey Bar), dos The Doors. Colhi palavras e frases do livro do Braudel e comecei a compor uma métrica, pensei inicialmente num poema. Tanto que a brincadeira com mercado, ria! e pirata, ria! acabou ficando na gravação, e precisei castigar no “r” do verbo rir para não perder o trocadilho. Havia brincado também com Veneza (Vê, Neuza) e troquei "de coca", de cócoras, por "invoca". Havia escrito "elã", sei que não dá para entender esta palavra velha ao cantar, mas deixei. Quer dizer entusiasmo, impulso, acho que errei, mas prometo melhorar e tomar extremo cuidado quando for transcrever um poema para uma canção.
A harmonia original foi feita pelo meu parceiro João Bustamante, fizemos inclusive uma canção juntos em que, de novo, trouxe um poema para uma canção, e que gravaremos em 22, mas acho que nesta deu certo. O ritmo original é bem Alabama Song, meio circense, mas o samba sempre esteve presente. Eu fazia um vocalize humilde no final do formato original que virou o coro grande de samba do final.
Quando nós, médicos de família e comunidade do bairro da Penha, formamos a banda Empenha em 2012, a ideia era se divertir na base rock, assumi os vocais e matei a saudade da adolescência, porém sempre descambamos para música brasileira, Gil, Caetano e Chico com uma roupagem mais rock clássico. Levei o Medo Medieval para os ensaios e começamos a brincar, a rapaziada tira onda comigo até hoje, dizem não entender parte da letra. Certamente é a nossa mais antiga música autoral depois da marchinha Sisreg que fizemos bem no início e gravamos uma demo.
Adorei os arranjos de guitarra, baixo e bateria. a combinação de Zartinho (Moisés Nunes) e Baiano (Fernando Pedroso) na guitarra, a precisão, adoro especialmente o solo do Zartinho e o retorno pós início da parte B2 (Veneza) do Baiano, lembra muito Gang of Four, The Clash. A segurança na bateria, inclusive no samba, que não é a praia do Leo Graever, e a linha de baixo original e diferente do Jorge Maravilha (Jorge Esteves), prestem atenção, são pontos altos. A gravação e mixagem desses instrumentos ficaram ótimas nas mãos do nosso produtor nesta canção e em outras, Bruno Villar, que está conosco desde 2017. Não gosto do esforçozinho que fiz a mais para cantar, nunca mais gritarei, só em show, não gosto da minha dicção em "Pérsia", meio carioca de ponte aérea. Porém, gosto da voz no samba e adoro também o coro final.
Gravamos alguns instrumentos de percussão (surdo, tamborim, pandeiro, ganzá) com a minha amigona percussionista super talentosa Geiza Carvalho, que estudou clássico e popular aqui no Rio e na Alemanha, e foi minha parceira de percussão na banda Harmonia Enlouquece, da qual ainda pertenço com muito orgulho. Aprendi muito com ela e com Dedé, meu outro parceiro. Acho apenas que na próxima poderíamos melhorar na captação e mixagem, não é fácil gravar percussão.
Sobre o processo de gravação, deu-se em dois estúdios, Overloud, em Vila Isabel, e HR, na Tijuca. Lembro das madrugadas no Overloud, a garrafa de uísque e nós exaustos. Tem fotos de Baiano e Jorge dormindo no chão da sala da técnica e da gente gravando o coro, acho que tirada pelo Leo, que não sei porquê não cantou, apesar de afinado.

Medo Medieval é o nosso filho mais velho, então a gente ama, e também enxerga mais os defeitos, espero que trazer o contexto do processo ajude vocês a ouvir com outros tímpanos. Jacques Le Goff, especialista em Idade Média, defende a tese de que esta coisa de pintar essa época como sombria, cinza, trevas, estagnação, cheia de medo e de superstições, como antagonista do Renascimento, iluminado e ilustrado é um erro, mas também uma narrativa proposital. Não pode haver alegria e criatividade em tempos de baixo consumo. Porém, engana-se quem acha que os que ficaram à margem são necessariamente deprimidos por não terem grana para consumir o que não precisam no mercado livre.
No meio do massapê da monocultura exportadora escravocrata, na Zona da Mata pernambucana, nasce a flor do cavalo-marinho e maracatu rural. De mono para multicultura stereo, mais rico do que qualquer lucro. Daí a insistência no medo medieval, que é na verdade um não medo, uma coragem de enfrentar as nossas próprias trevas, que nunca estão isoladas, pois sempre terá a esperança de um batuque e da guitarra, seja em Vila Isabel, em Nazaré da Mata, na China, na Península da Ístria ou num banco de uma praça russa.

Instagram @praia_vermelha_



Medo Medieval (Tufa)


a Fernand Braudel


 


  Invista no vinho branco da Ístria

  Insista no extremo norte capitalista

  Elã!,  o verde trigo da Pérsia

  Conversa no banco da praça russa


 
Mercado,  ria!


Vem, capital

De poesia


  Chega de tanto lucro irreal (3X)


    Veneza comprou a seda da China

    Me ensina usura que não se esqueça

    Milito no rico mundo da troca

    Invoca, me peça mais gasolina



    Pirata,  ria!


Bem virtual


    À revelia


      Do nosso medo medieval (3x)


           (solo de guitarra)



Veneza comprou a seda da China


    Me ensina usura que não se esqueça

    Milito no rico mundo da troca

    Invoca, me peça mais gasolina



    Pirata,  ria!


Bem virtual


    À revelia

         
      Do nosso medo medieval

         Do nosso medo medieval

         Do nosso medo medieval

         Chega de tanto lucro irreal


            coro




créditos:


melodia e letra: Alfredo de Oliveira Neto (Tufa)

arranjo: banda Empenha

produção musical: Bruno Villar


créditos da gravação:

guitarra base: Fernando Pedroso (Baiano)

guitarra solo: Moisés Nunes (Zartinho)

bateria: Leo Graever

baixo: Jorge Esteves (Jorge Maravilha)

voz, pandeiro, palmas e efeitos: Alfredo de Oliveira Neto (Tufa)

vocais: Baiano, Zartinho, Tufa, Bruno Villar e Jorge Maravilha

surdo, tamborim, efeitos, palmas: Geiza Carvalho.


gravado entre 2017 e 2018 nos estúdios Overloud, no bairro de Vila Isabel, e HR, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro.


 



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