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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Ilustres desconhecidos



mas ao menos a ele alguém o via,
ele era fixo, eu, o que vou
se morrer, não falto, e ninguém diria:
desde ontem a cidade mudou.
(Cruz na porta da tabacaria!, Fernando Pessoa) 

Morreu a senhora da lojinha da natação, como não sei seu nome a chamarei assim mesmo: “senhora da lojinha da natação”.
Apesar de nos virmos duas vezes na semana em dois anos e meio, não tivemos mais que um diálogo além dos inúmeros “boa-noite” e “boa tarde” e dos mais ainda inúmeros acenos com a cabeça a meio riso.

Tal diálogo se deu num dia em que não mais agüentei a vergonha de nadar com uma sunga cujo forro de lycra externo azul caía feito uma pelanca por entre minhas coxas, parecendo fralda suja. É que sofro de materialismo em matéria de roupa, e quando me afeiçôo não largo uma peça, antes de ela me largar.

Fui à lojinha e a boa senhora estava na sua posição habitual, sentada num banquinho, cotovelo à mesa, cabeça à mão, pés apoiados no ferrinho inferior do banquinho e pernas a balançar.

Oi, meu amor, sunga só tem pra criança.

Era uma lojinha que vendia biquínis, sungas, maiôs e alguns aparatos de natação. Após fazer cara desconsolo, ela se lembrou que havia uma sunga sim, mas que ninguém queria. Quando abriu o saquinho no fundo da colméia de fórmica branca, surgiu o estampado verde piscina de folha de coqueiro em fundo amarelo manga. Sunga de green go. Claro que ri. Perguntei, juro sem querer ofender, se estava usada, ela se ofendeu um pouquinho, disse que não havia gostado do meu comentário, pedi desculpas. Longe de mim ofender a senhora da lojinha da natação.

Mais ou menos um mês depois, me deparo com a lojinha vazia, achei que havia falido, nunca vi muita gente lá dentro e a variedade dos produtos já vinha escasseando.

Hoje a recepcionista me revelou o passamento.

Imediatamente me dei conta da importância que tem as pessoas que estão no nosso cotidiano, mesmo trocando meias palavras. É como se já compusessem o cenário de nossas vidas.

Toinho, zelador do prédio da minha mãe, que após uns quinze anos percebi que nem “boa-noite”, bem articulado, havíamos trocado, somente o bom e velho “Ô”, o Véi da Coxinha da faculdade, sobre o qual fui muito mais além chegando a entrevistá-lo para o jornal do diretório acadêmico, a auxiliar de serviços gerais do mestrado que me deixava surrupiar o cafezinho da copa, o senhor melancólico com cigarro no bico que vende LPs, revistas e livros velhos aqui na esquina de casa...

Da maioria não sabemos o nome, não importa, nos passam a confiança de que pertencemos a algum lugar e a sensação de que navegamos no mesmo barco, atravessando as ondas do tempo.

Senhora da lojinha da natação, saiba que em sua homenagem usarei aquela sunga espalhafatosa até cair pelancas novamente.

Só peço a todos vocês, ilustres desconhecidos, que não nos abandonem assim de uma hora pra outra.

Sem mais delongas, boa noite.

Bom Dilma


















“Uma carta sempre pode falhar ao seu destino”

(Jacques Derrida)

“Mas mesmo assim precisa ser escrita”

(eu mesmo)

por Dr. Luiz, médico de família de uma OS perto de você




Presidenta,

Mário tem 46, acha que vai fazer 48, mas tem aparência de 60, é catador de lixo e engraxate, recém tratado de tuberculose, conversador toda vida mesmo faltando-lhe os incisivos superiores, foi meu último paciente hoje às 19h30m, era o 30º-.
Sei que a senhora não é médica, mas acredito, como em qualquer outra função, que despacho de presidenta tenha limite. Quando alguém do PMDB precisa vê-la no comecinho da noite, após 2 mesas intermináveis de lançamento de programas e 3 conversas de corredor, não menos intermináveis, com aquela mãozinha no cotovelo da senhora, imagino o quanto sentimento de inimigo emana da sua robusta paciência ao ser obrigada a se sentar com a base aliada.
Estava eu que nem a senhora, apertando a mão do escritor Sarney, às 19h30m, quando entra o Mário, bem-humorado, no meu consultório de médico de família e me apresenta seu caderno de caligrafia. Isso mesmo, ele não se queixou, diferente dos outros 29 do dia, de nenhuma dor de cabeça, diarréia, coisa-ruim, coceira, mancha ou falta de ar. Mostrou seu caderno de caligrafia, foi folheando lentamente enquanto diante de mim apareciam a, e, i, o, u, muito mais elegantes do que o Arial insosso em que digito esta carta. “E” de escada, “O” de ovo, “U” de uva, cada letra correspondendo a um desenho do Mário. Quando terminou, ele se sentou, e me disse em tom de confidência: “Dr., preciso de um remédio para abrir minha cabeça”.
Sabe, presidenta... naquele momento, depois de 6h e meia sem beber água, sem ter operacionalizado minhas diureses, sofrendo da lombalgia do partido dos trabalhadores (das antigas, é claro), meu coração de operário foi amolecido numa lata de óleo. E ficou assim por alguns minutos, batendo rubro-negro.
Mário estava sendo pressionado pelas professoras de alfabetização de adultos do curso noturno que freqüenta a uns dois quilômetros da sua casa, um dos cinco barracos mais precários da minha área adstrita. Elas haviam estimulado o Mário a ir atrás de ajuda para resolver, segundo elas, sua deficiência de aprendizado. “Elas me disseram que pode ser problema de hormônio”. Subentendi depois de alguns minutos que o hormônio se chamava ritalina, se a senhora não conhece, é um nome comercial do metilfenidato, uma catecolamina (agonista adrenérgico), que possui estrutura química semelhante à anfetamina (derivado piperidínico). Trocando em miúdos, é a alegria nos últimos vinte anos da indústria farmacêutica Novartis, pois além do filão para melhora da concentração entre executivos (leia-se produtividade no mundo dos negócios), e para emagrecimento de moças já bonitas, recentemente a Novartis mirou nas criancinhas “peraltas”, o que logo virou uma epidemia chamada distúrbio de hiperatividade com déficit de atenção. Também é uma febre entre estudantes que se preparam para concursos. Enfim, uma “bolinha” vendida em farmácia, assim como a cocaína na década de 20.
No início da consulta, apesar do coração já amolecido pelo óleo da lata, resisti: “Mário, infelizmente a medicina não tem um remédio para abrir a cabeça”. Ele me olhou surpreso: “tem não?”. Nesse “tem não?”, presidenta, confesso que senti nó de choro na goela. Lembrei do Giosuè, Guido e sua “principessa” do filme “A vida é bela”, todo aquele esforço de Hércules do Guido em esconder do garoto que aquilo ali era um campo de concentração nazista, tentando sustentar que tudo não passava de uma grande brincadeira muito bem bolada.
A miséria de Mário foi o campo de concentração em que me sustentei para não lhe privar da esperança. Não iria ali fazer um discurso “conscientizante” sobre classes sociais, estrutura e superestrutura, para lhe explicar o porquê da sua dificuldade de ler. Não iria estimulá-lo a se indignar com a injustiça do mundo capitalista e se associar ao sindicato dos catadores de lixo, tornando-se em vez de um Mário falador e bem-humorado, um companheiro sisudo e com a raiva na garganta dos seus discursos.
Também não iria lhe explicar que o mote do governo Lula era o Fome Zero e o da senhora é o Brasil sem Miséria, apesar de que a fome e a miséria nunca desaparecerão se outras bolsas-valores-‘famiglias’ não esvaziarem de vez.
Muito menos iria lhe noticiar que está acontecendo uma crise no capitalismo global e que os ricos, que são a condição para a existência da sua miséria, estão agora com uma cefaléia tensional leve, muito leve.
Definitivamente, não, presidenta.
Menti que nem o Guido a Giosuè: “buonguorno princepessa, me enganei! Tem sim um remedinho pra você, Mário”, ele me abriu o sorriso banguelo, pegou a receita e disse que tinha de ir, “tô atrasado pra aula”.
Bateu à porta e me deixou sozinho, com o rubro-negro já esfacelado no fundo da lata.


Mande-me notícias, presidenta, há tempos que não recebo uma carta sua.
Carinhosamente,
o seu Dr. Luiz
ps: o “remedinho” foi Gingko Biloba, um pop star da fitoterapia.