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segunda-feira, 13 de junho de 2011

A flor de copihue (ou algumas dicas do Chile) parte 1


Apertar el cinturón de seguridad, cumeeira dos Andes esfriando nossos pés, encontro dos ventos mais altos das Américas soprando o aviãozinho de papel. Os Andes são como o mar ressacado do Atlântico, de longe emana o espírito magnético da grandeza selvagem, de perto, a certeza desconcertante do intransponível.
A natureza do Chile é sensível, diferente, irritável, apaixonante. Um pequeno filete de terra banhada pelo Pacífico, cuja estrutura física se assemelha a um gigante aprisionado, que de vez em vez, grita terromotos e cospe vulcões.
O resultado são bosques rodeados por cordilheiras, cachoeiras, pedras molhadas, vegetação exuberante, abraçados por montanhas enevadas. Segundo Neruda: “quem não conhece o bosque chileno não conhece este planeta”. Saí dos bosques levando uma flor de Copihue que ofereci à Terra.
Nesta crônica de viagem, a qual fiz de lua-de-mel com a minha Luana, tentarei apresentar um pouco de minhas lembranças mapuches.
Dividirei em 2 partes para evitar bocejos e cochilos...


Santiago:
Do cerro de San Cristóbal, tem-se a certeza de que a indústria automobilística precisa ser cruzada por ciclovias. Uma espessa camada cinzenta amaldiçoa o futuro da cidade, rouba-lhe o fôlego. Apesar disso, lá de baixo o céu é azul, os álamos elegantemente se despem folha por folha, e um ar parisiense perfuma as calçadas. Apesar do charme ser fermentado, tudo se veste de brilho quando um cálice de pisco sur é tragado em alguma botilleria de Bellavista. Bairro querido pela fonte inesgotável de amor chilena, o grande Nefatli Ricardo Reyes Basoalto, mas se chamá-lo por Pablo Neruda, ele atenderá. Nunca desconfiei que seria um pseudônimo...
Bellavista, antes um bairro operário, comporta hoje uma fileira de bares charmosos. Dois se depontam: um, que me esqueci do nome, mas basta descer a rua Constitución rumo ao Pátio Bellavista, que dará para ver uma graça de varandinha, de onde se pode enamorar de uma encruzilhada de outros bares. Fica justamente na esquina à direita de quem desce a calle.
Cai a tarde fria em Santiago, e uns camarones a pil pil aterrisam à mesa, é como que se a gente se acasacasse por dentro.
Outro bar imperdível é um jazz club de nome Thelonius (http://www.theloniouschile.com/). Particularmente, o melhor bar de jazz que já fui, confesso que não conheço tantos, mas o aconchego e as jams sessions naturalíssimas, ao ponto de aqui um trompetista levantar após uma garfada de pizza, ali um baterista se animar após um gole de vinho, essa espontaneidade me transportou para os olhos fechados de Bessie Smith e as bochechas de Armstrong.
Os caras iam se revezando sob aplausos de todos a cada duas a três canjas.
Quando, de repente, levantou-se do balcão um negro, o primeiro que tinha visto no Chile, alto, usava uma vasta barba crespa, que se unia a uma trança generosa de rastafarai. Andando de forma elegante dentro de um blazer sentou-se ao banco do piano. Era a encarnação Thelonius. Por detrás da bateria se jogou um teenager ariano, muito magro, rosto branco de criança com rabo de cavalo galego. No baixo, um provável chileno de traços mapuches. Ou seja, um outdoor da Benetton.
Esse jazz multiétnico foi o melhor grupo da noite, o bar todo se virou para conferir como é possível um mundo de diferentes gerar uma unidade, uma sintonia de fazer Gilberto Freyre chorar. Após umas duas músicas, houve um pequeno estresse, pois perfeição é pura invenção humana, justamente entre o negro pianista e o baterista branco. O piano soltou um ritmo inicial que a bateria não conseguia seguir, após muitas tentativas do pianista, amigos do teenager vieram lhe soprar aos ouvidos a levada. A partir daí, não teve mais desentendimento e a miscigenação musical dava mais uma vez o exemplo para o pequeno mundo de privilegiados que madrugavam naquele jazz club enfumaçado.
Isso: fumaça, justamente na primeira semana de junho, quando lá estava, a pauta principal das manchetes antes da erupção do vulcão, era a recente Lei do Tabaco que acabava de ser votada no senado chileno. Talvez o Chile tinha sido o retardatário, apenas sei que aproveitei para fumar talvez meu último cigarro dentro de um bar, provavelmente uma cena de um futuro museu multimídia. Fiz questão de pedir na mesa ao lado.
A querela entre o branco e o negro como já disse não deu em nada, o que conferi no final quando fui lhes agradecer e já estavam conversando perto do balcão com suas doses e gentilezas.
Essa diplomacia interétnica me remonta ao grande Neruda que comprou uma casa cortada por um córrego numa época que a especulação imobiliária em Bellavista era rasa. Uma casa para se encontrar com a sua amante, que depois se tornou sua musa e viúva e para quem lhe dedicou cem sonetos de amor. Era Matilda Urrutia, e devido à sua cabeleira ruiva e esvoaçada, o poeta entitulou a casa de La Chascona, “a despenteada”.
Visitar as casas de Neruda no Chile (há mais duas: La Sebastiana em Valparaíso e uma em Isla Negra) é um dever para quem gosta de viver bem. Muito peculiares, muitas vezes de uma esquisitice kitsch, mas de um charme e aconchego inegáveis. As casas possuem em sua decoração e espaço interno uma sensação de interior de barcos, como se dali ele se aventurasse no mar de sua poesia. Casas de “cantinhos” com exuberância de detalhes e histórias.
Mas ao descer na cidade, não fui recebido pela poesia.
A primeira visão de Santiago ao descer do ônibus Centropuerto próximo à estação Los Heroes, foi de policiais da tropa de elite atravessando a Av O'Higgens escoltando jovens de olhos firmes de dignidade rumo ao camburão. Descobrimos pelo taxista que las manifestaciones juvenis contra a política de Piñera de privatização do ensino público havia desencadeado um efeito dominó de movimentação estudantil em todo o Chile.
Esse sentimento político que invade as ruas tanto do Chile como da Argentina é nitidamente diferente do nosso e mais próximo aos europeus.
Para além da Europa, suponho que as raízes dessas terras ficaram impregnadas por uma resistência indígena mais forte que a nossa. Neruda explica o extermínio da raça com fina ironia: “Contra os índios todas as armas foram usadas com generosidade: disparos de carabina, incêndio de suas choças, e depois, de forma mais paternal, empregou-se a lei e o álcool. O advogado se tornou especialista também na espoliação de seus campos, o juiz os condenou quando protestaram, o sacerdote os ameaçou com o fogo eterno. E, por fim, a aguardente consumou o aniquilamento de uma raça soberba...”.
Carabina, fogo e a lei, mas os gritos mapuche ainda são ouvidos pelas ruas.


Dicas rápidas de Santiago:
1) Pegue o blue bus Centropuerto no Aeroporto, sempre carregue poucas malas. Esse autobus pára no Centro na estação Los Heroes, de lá você percorre quase toda Santiago embaixo do chão.
2) Evite vôos de madrugada, o Centropuerto só começa a circular a partir das 6 da manhã. Além disso, viajar pelo Chile é muito mais barato de ônibus, e esses só chegam em Santiago, independente de onde você vier, a partir das seis da manhã.
3) Deixe para cambiar dinheiro no Banco do Brasil que fica na principal avenida O' Higgens no bairro Las Condes, próximo à estação Le Golf. No banco Safra do aeroporto do Rio (o BB do Galeão não trabalha com peso chileno) 1000 pesos são 4,5 reais. No BB de Santiago, 1000 pesos são 3,28 reais.
4) Não deixe de aproveitar os piscos, uma cachaça de uva vendida em todos os bares e que levanta qualquer ressaca.
5) Como em qualquer cidade se deixe mofar por algumas horas em algum café do Centro lendo um jornal matutino.
6) Chocolate quente das padarias mais baratas, aquece as mãos e lhe deixa com o olhar para o nada.
7) Tente ficar em algum hotel ou apart-hotel no Centro. Passei uma diária no Ameristar Apart-hotel, bem localizado. Não deixe de acessar o booking.com (em qualquer viagem), muita variedade a todos os preços, além de promoções.
8) Leve carteira de estudante, caso seja, alguns cantos aceitam carteira brasileira.
9) Ir ao vinhedo da Concha y Toro, escolher o tour mais caro, com direito a quatro taças e uma tábua de queijo, tentar pechinchar uns 10%. Depois, almojantar ao entardecer num restaurante que tem lá perto La Vaquita Echá, eles não cobram a rolha do vinho e o clima é de restaurante familiar, descontraído e bom.
10) Visitar o Museu Chileno de Arte Precolombino, próximo a Plaza de Armas, para perceber a necessidade de uma multa vitalícia e hereditária paga mensalmente pelos colonizadores aos colonizados (preferencialmente em libras esterlinas).


Obs.: Fim da parte 1.


Cenas do próximo capítulo:


...Valparaíso, Puerto Varas, vulcões em chamas e uma experiência mapuche...

6 comentários:

  1. Muito bom, Tufão!
    Mas eu quero mesmo é a crônica do casório a que não pude ir... Vai sair ou não?

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  2. Fredo.... muita vontade de seguir teu roteiro...
    DECIDIDO: próxima viagem CHILE.Bjos CELA

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  3. Sãozin, a do casório deverá entrar como capítulo de minha biografia que escreverei aos 70...
    Mandar-lhos-ei fotos e em Baltimore lhe revelarei os detalhes.

    Ok, Cela, só espera a cinza abaixar... bjs.

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  4. Grande Tufaman.

    Olhares diferenciados por uma ótica única.
    Chile será contemplado em breve.

    bjs Lula.

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  5. Senti todos os cheiros, vi todas as cores, ouvi toda a jam, Alfred !!! Ainda dei boas rizadas no final com as dicas - que anotarei com bastante atencao - pra mim suas dicas de viajem jah me cairam excelentemente beeem! Muitissimo agradecida. Xero grande. Amanda Benemerita.

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  6. A jam dos cheiros e cores. Êba,valeu, Amandinha e uma flor de Copihue pra você!

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