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domingo, 4 de setembro de 2022

sarrabulho: o conto do canto

 

Na cheia de 66, Alfredo de Oliveira, meu avô paterno, perdeu os originais das quatro peças que havia escrito e vários roteiros de teledramaturgia da TV Jornal do Commercio no Recife, do qual foi superintendente. A água barrenta chegou ao teto da casa da Rua Doze de Outubro no bairro dos Aflitos, de sugestivo nome.

Perto dali, minha mãe, na rua Viscondessa do Livramento, no Derby, aos 14 anos, foi impelida a realizar um aventura. A sua tia, do outro lado da Avenida Agamenon Magalhães, tipo uma Presidente Vargas, estava com a casa intacta, por ser mais elevada. A sua prima grávida, Silvia Suassuna e o seu saudoso companhiero Sérgio Suassuna,  ilhados com a minha mãe, além do meu tio, o caçula Petronilo Santa Cruz de Oliveira Filho, o Petrinho, do qual nunca digeri a partida aos 49, foram literalmente na enrascada com a água no pescoço, tateando buracos e pontes para atravessar o canal.

Quando menino, no bairro de Boa Viagem, lembro o percurso da minha casa às temerosas provas de fim de primeiro semestre no Colégio Santa Maria durante o mês de junho. Carros com água na porta. Todo junho era isso. No entanto, nunca sofri grandes cheias no Recife. Meu batismo de desespero com a ansiedade das águas se deu já no Rio de Janeiro na enchente de abril de 2010, uma experiência tão forte que comecei este blog, Riocife

Numa ida à capital pernambucana por volta de 2010, li uma matéria de jornal sobre cidades que desapareceriam em algumas décadas por estarem abaixo do nível do mar, devido a uma previsão de aquecimento global bem pior que a do verão carioca. Recife e Sydney estavam na lista de futuras cidades submersas, projetei o fim da minha cidade querida com uma orquestra de frevo resistindo tipo banda do Titanic, o último carnaval embaixo d’água no sarrabulho da maré.

Alfredinho, cuidado com o sarrabulho! Minha mãe costumava me alertar quando me arvorava já na carreira rumo ao mergulho. Um pai de santo me falara, eu filho de Iemanjá, o que me dava uma segurança tremenda, até hoje. Na minha pré-adolescência, última fase do surf em Boa Viagem pré-tubarão, a galera falava “vaca”, mas sempre me referi ao caldo, vaca como sarrabulho. Achei que todo mundo falava assim, e por isso sempre precisei me explicar quando a pronunciava. Descobri após gravar a música que é também um prato ibérico de carnes tradicionalíssimo, tipo sarapatel, Buñuel que me ensinou no seu irresistível Meu Último Suspiro. Fico na dúvida se uma gravação do mestre Jackson do Pandeiro de mesmo nome se remete a ter sido convidado para comer este tipo de comida, ou se seria uma festa.

Da matéria do jornal, veio a ideia do frevo e comentei com Sid Dantas, parceiro em Bispo, Mudânica Superativa e Sapo e Perereca sobre a vontade de cantar um frevo distópico-elegíaco pra minha cidade. Outra cena que me ajudou a letrar a canção foi aquela do final do Inteligência Artificial, com Jude Law e o menino do I see dead people. Um submarino nas profundezas encontrando os escombros de Manhattan. Imaginei-me naquele módulo tipo 20 mil léguas submarinas passeando pelo telhado do Teatro Santa Isabel, o baobá da Praça da República, o Acaiaca, os mercados.

Lembro um fim de semana ainda em Vila Isabel quando Sid me enviou a melodia toda pronta e majestosa por email. Na rede azul da varanda das plantas da rua Torres Homem me prometi que só me levantaria com a letra pronta. Não demorou tanto. Vibrei quando consegui a rima disse-me-disse com Recife, e a imagem de “a tuba que mergulha demais no refrão”.  Na época descobrindo Manoel de Barros, mandei um “vem me navegar, Beira-Rio, Maré”.

O frevo é um gênero muito caro a mim e a minha família. Meu avô Alfredo foi o fundador do Baile Municipal do Recife, tradicional baile carnavalesco quando secretário de cultura de lá. Valdemar de Oliveira, meu tio avô, irmão de Alfredo, escreveu um ensaio seminal intitulado Frevo, Capoeira e Passo. Quando Spok e sua Orquestra o comentou num show no antigo Canecão, tomei um susto. China recentemente no excelente podcast O Som a Pino , da Roberta Martinelli, citou Valdemar quando falou sobre a versão de frevo que fez para Deixe-se Acreditar, da qual gostei muito, e Hardcore Brasileiro. Meu tio-vô também compunha e tocava piano muy bien. O seu irmão Walter era cunhado do craque Nelson Ferreira, o nosso Pixinguinha do Frevo, com quem Valdemar costumava se abraçar com projetos teatrais e musicais. Meu pai, afilhado de Valdemar, costumava cantar quando altinho um frevo triste lindíssimo do tio Vavá que ainda vou gravar antes de partir.

Antônio Maria era primo legítimo do meu avô materno, Petronilo Santa Cruz de Oliveira. Exatamente, a árvore da azeitona oliva cristã nova está nas raízes de ambos os lados. O vô Petro conviveu com o Maria na infância e adolescência na Usina Cachoeira Lisa em Gameleira/PE e nos contava as histórias confessáveis e as de fazer Erika Lust corar. Há várias crônicas deliciosas do Maria no seu recente livro de inéditas Vento Vadio, que ganhei de aniversário da minha bem-amada ano passado, e faço questão de lê-lo devagar com medo de acabar. Maria ficou conhecido pelos sambas-canções, mas escreveu frevos da série “é de fazer chorar”.

As principais referências para Sid e eu foram os frevos do Valdemar de Oliveira, Nelson Ferreira, Antônio Maria e do Edu Lobo, cujo pai, Fernando Lobo, também pernambucano, era amigo-irmão do Maria. Você Está Sozinha, “Carnaval na Lua”, assim chamarei a inédita do tio-vô, Frevo da Saudade, Frevo n.2 , No Cordão da Saideira e Frevo de Itamaracá. Ou seja, nossa onda era um frevo-canção tradiça, porém harmonicamente sofisticado, todavia sem pretensões contemporâneas de temperar com brega-trance, funk melody, música cigana, ou algo do tipo. Nada contra, tá?

A banda Empenha começou a ensaiá-la com orquestração de guitarras, baixo e bateria. Tocamos em alguns shows, porém sabia que não poderia ser gravada assim. Quando Henrique Albino se aproximou da Orquestra Contemporânea de Olinda, dos amigos Tiné e Gilu Amaral, tomei coragem de perguntar se ele toparia compor os arranjos de metais e executá-los. Foi antes da pandemia. O trabalho ficou bem melhor que a encomenda. Espero um dia que a Praia Vermelha lance a guia só dos metais, uma loucura de precisão e técnica. Fico muito feliz que Sarrabulho tenha a assinatura deste que considero um dos mais inventivos metaleiros do país. Ele nos presenteou com um vídeo sobre a canção que começa: “Acordai-vos!..”, tá no nosso Insta.


A gravação da base se deu sob as batutas do nosso produtor Bruno Villar em um estúdio muito aconchegante na Tijuca, o Locomotiva, do educado e dedicado Sidney Sohn. A base clássica do Empenha gravou: Leo Graever na batera, Jorge Esteves no baixo, Zartinho nas guitarras e eu na voz. Bruno Villar fez comigo os vocais.

Considero este frevo minha melhor letra em melodia pronta, e a melhor gravação do Praia Vermelha, por isso a elegemos o nome de nosso primeiro EP. A história da sessão de fotos para a capa deste EP cabe em outra crônica, mas adianto aqui.

Zartinho, o Moisés Nunes, amigo-irmão, diretor musical e proprietário do Praia Vermelha Estúdios S/A me alertou que não poderíamos escolher imagens ao léu no google sobre sarrabulhos no mar e inserir como capa devido aos direitos autorais e coisa e tal. Portanto, em uma mísera fração de horas numa tarde dia de semana, entre trabalho e pegar os meninos na escola, fomos à própria Praia Vermelha com figurinos e uma câmera à prova d'água. Nossa sorte é que naquele mar geralmente flat, havia umas marolas que dariam para encenar, e tomar de verdade!, sarrabulhos. Os banhistas nada entenderam, eu de blusa e camisa social entrando n'água. Insatisfeitos com a sessão, fomos à casa do Zartinho, ali mesmo na av. Pasteur, e onde ficam os estúdios, para tentar de dentro de sua piscina, que estava suja, takes de mim com capacete de moto embaixo d'água. Pensem numa coisa difícil, afundar com capacete numa piscina turva. Acho que a ideia do capacete é porque eu gostava da capa sui generis do Astronauta Tupy, do Pedro Luís e A Parede.

    

Como Sarrabulho foi composto em 2010, obviamente não imaginávamos o retrocesso trash pós 2013 das políticas ambientais e nos sentimos os próprios Orwell e Huxley quando a lançamos em pleno 2022, quando foi registrado na Amazônia, durante o primeiro trimestre, o recorde de desmatamento desde 2016 segundo o Inpe. 2022 também foi o ano do recorde de mortes por enchentes no Brasil. Só na terrível enchente do Recife no último maio foram 128 corpos encontrados, o pior desastre natural pernambucano em 50 anos. A comunidade onde participei de um projeto de extensão na graduação, Bulicomtu, chamada Jardim Monte Verde, no qual apresentava um programa de rádio, Bulicomtu, com meu outro amigo-irmão Izaias Francisco de Souza Jr., comunidade contígua ao Jordão Baixo, onde fiz residência médica de medicina de família e comunidade, pois bem, foi muito destruída pela chuva e eu dedico esta crônica para os familiares sobreviventes, os verdadeiros heróis brasileiros. 

Acordai-vos para as emissões de CO2, para as bandeiras vermelhas na conta de luz, para a economia na vazão de vossas pias. Acordai-vos, senão levantareis com a água no pescoço, nadando na área de serviço para alcançar a boia do menino que ficou ali entretido em cima do móvel da sala vendo a banda passar embaixo d’água. Porque quando vem a enxurrada é que nem o frevo que, segundo Valdemar de Oliveira, não convida a multidão à dança. O frevo simplesmente arrasta.


Spotify

Youtube


Ficha técnica:

melodia e harmonia: Sidnei Dantas

letra: Alfredo de Oliveira Neto

arranjos gerais: Moisés Nunes, Jorge Esteves, Leo Graever e Alfredo de Oliveira Neto

arranjo de sopros: Henrique Albino

produção musical: Bruno Villar e Moisés Nunes

mixagem e masterização: Bruno Villar e Moisés Nunes

gravado no Locomotiva Estúdio (Rio de Janeiro/RJ) e Estúdio Carranca (Recife/PE) em 2018 e 2019

 

Voz: Alfredo de Oliveira Neto

Vocais: Bruno Villar e Alfredo de Oliveira Neto

Guitarra: Moisés Nunes 

Bateria: Leo Graever

Baixo: Jorge Esteves

Sax alto, Sax tenor e Flauta: Henrique Albino

Trombone: Moab Nascimento

Trompete: Jonatas Araújo

Tuba: Alex Santana





terça-feira, 14 de junho de 2022

Medo Medieval (translation)

 medo medieval (Alfredo de Oliveira Neto)

Medieval Fear

to Fernand Braudel


(1)

Invista no vinho branco da Ístria

Invest in Istrian white wine

   

Insista no extremo norte capitalista

Insist on the capitalist extreme north


Elã! O verde trigo da Pérsia

Cheer!, the green wheat of Persia



Conversa no banco da praça russa

a chat on the bench in the russian square


Mercado, ria!

Market, laugh!


Vem, capital

Come, capital



De poesia

Of poetry


Chega de tanto lucro irreal (3x)

Enough of so much unreal profit (3X)



(2)

Veneza comprou a seda da China

Venice bought silk from China


Me ensina usura que não se esqueça

Teach me usury that cannot be forgotten


Milito no rico mundo da troca

The rich world of exchange is my flag



Invoca, me peça mais gasolina

Are you teasing me? So, ask me for more gas


Pirata, ria!

Pirate, laugh!


Bem virtual

Too much virtual


À revelia

Even if contrary to


Do nosso medo medieval (3x)

Our medieval fear (3x)

            (guitar solo)

Repeat  (2)

choir





Bispo (translation)

 Bispo (Sidnei Dantas /Alfredo de Oliveira Neto)


Dizem que ele vem de Japaratuba

People say that he comes from Japaratuba*

         

Mas poderia dizer

But he could say


apenas apareci

I just showed up


Borda seu universo em cada traço

Embroider his universe in every line dash



Que segue a risca do céu

That follows the line of the sky


No seu abismo era rei

In his abyss he was king



Se você mandar fazer

If you demand that I do



Um barco para me salvar

A boat to save me


Fico escutando você

I keep listening to you


Durmo de olhos pro mar

I sleep with my eyes to the sea



Borda um manto verde de mangas longas

Embroider a green long-sleeved mantle


Com bandeirinhas de cor

With little colored flags 


São parecidas

They are similar


Broche de almirante, casa caiada

Navy admiral brooch, lime painted house


Da nossa federação

Of our federation


Terra arrasada

Scorched earth


Ouço o que devo fazer

I hear what should I do


Morro pra me apresentar

I die to introduce myself


Quando vão compreender?

When will they understand?


Solto o estandarte no ar

I throw the insignate into the air


Desengancho de tudo isso

I get rid of all this


Me convenço, perco o juízo

I convince myself, I lose my mind


De ver a Praia Vermelha**

Seeing the “Red Beach”


E o engenho de dentro*** de mim

And the ingenuity inside of me





*a city from Sergipe State, northeast of Brazil

** a beautiful beach in Rio de Janeiro, Brazil, in the neighborhood of Urca, where there are still two large psychiatric hospitals

***Engenho de Dentro (“Mill from Within”) is also a name of a neighborhood in Rio de Janeiro, where there is the first psychiatric asylum of Brazil, opened in 1852, but since 2004 renamed to Nise da Silveira Institute, a tribute to that woman psychiatrist who revolutionized mental health care in Brazil, introducing art therapy in the 40's. In 2021, hospital discharge was granted to the last patient who was hospitalized, thus ending psychiatric hospitalization at this Institute








Ágatha (translation)

 Ágatha* (Alfredo de Oliveira Neto – Tufa e Moisés Nunes – Zartinho)




eu vou furar meu balão amarelo**                       I'm going to pop

my yellow balloon   

                      

acabou o brinquedo                                            child's play is over

                              

ninguém fica mais velho                                      no one gets older


me esparramar nas ruas sem fuzis               sprawl out on the streets

without rifles


quem for de lá pode chegar aqui***     whoever is from there

can get here


amanhecer e somente ouvir****                        at dawn and just listen


o rouxinol, pardal e bem-te-vi     the nightingale, sparrow and

welcome to you



aqui, o Alemão tem cor preta                  here, the German

has black color

         

e o senhor não se esqueça                                and your lordship

don't forget


suas mãos, minha dor                                         your hands, my pain


aqui, o Alemão tem cor preta                      here, the German

has black color

                                 

nem que tudo se inverta                                  even if everything

is reversed

                             

vou cantar minha cor                                         I will sing my color


            

quero dançar na ponta dos meus pés*****          I want to dance

on my tiptoes

                 

vou me jogar nos curuminso, convés          I'm gonna throw myself

on the deck with curumins

                 

na Fazendinhaa vou cavalgar                                in the Little Farm

I will ride

             

na amarelinha                                                    in the hopscotch

                

pular do céu no mar                                          jump from the sky

to the sea




* Ágatha, an 8-year-old black girl, was murdered by the police in 2019 when she was sitting next to her grandfather in a van, going up the hill where she lived, up in a large complex of slums in the city of Rio de Janeiro, called German Complex

** there is a picture that was featured on the news of her holding a yellow balloon and smiling

**** there are invisible territorial boundaries within German Complex that residents on one side cannot cross to the other, as they are territories commanded by rival drug trafficking factions

o Oca dos Curumins (“hollow of indigenous children”) is a cultural center that offers capoeira, dance and theater for children at the German Complex, where Ágatha used to practice capoeira

a   the name of the sub-neighborhood, “Little Farm”, where Ágatha lived


Sarrabulho (translation)

 Sarrabulho* (sidnei dantas e alfredo de oliveira neto) 


o mar já vem subindo                                        the sea is getting big

levanta, meu amor                                             wake up, my love!

a bóia do menino                                               where is the child’s float?

minha mãe me avisou                                      my mother warned me


que um belo dia tudo isso ia                      that one fine day it would all                                                                                  

se acabar                                                             come to an end

disse-me-disse de um Recife a rumor of the city of Recife

debaixo do mar  a rumor under the sea


vem me navegar                                                come, sail over me                                                          

beira-rio, maré                                                         riverside, tide

Pina, Caxangá                                    (name of neighborhoods in the city of Recife)

no Alto da Sé                                    (is a region famous for culture and carnival)

e nessa onda nosso frevo toca              and in this wave our frevo** plays          

o que quiser                                                        whatever it wants

no sarrabulho                                      while getting wiped out beneath the wave

rock brega samba funk axé              (samba, brega, funk from Rio and axé are popular rhythms in Brazil)

no balanço do mar                                              in the raging sea

trompete se esquece de entrar                   trumpet forgot to enter                              

a tuba mergulha demais                                    the tuba dived too deep

no refrão                                                               in the chorus                                                                                             


lá na beira do cais                                            there at the edge of the dockside

as pontes ficaram pra trás                               the bridges are left behind          

mercados não existem mais                           popular markets no longer exist

manguetown               (it's how the cultural movement Manguebeat calls Recife)     

                                                                           

a cidade acabou                                                    the city is over

ninguém quer dançar                                          nobody wants to dance

mainha avisou por iemanjá                                mammy warned by Yemanjá***


que um belo dia tudo isso ia                          that one fine day it would all

se acabar                                                               come to na end

disse-me-disse do Recife a rumor of the city of Recife

debaixo do mar    under the sea


*Expressão recifense que significa tomar um caldo, um caixote na onda do mar

Expression from the city of Recife that means to get wiped out beneath the wave                                                                                              

**original musical genre from Recife

*** Yemanjá is a major water spirit from the Youruba religion, from Africa, but also very popular in Brazil (Candomblé) and Cuba (Santería). She is a Orisha and the mother of all Orishas. The goddess of the sea. She does not easily lose her temper, but when angered she can be quite destructive and violent, as the floodwaters.