Na cheia de 66, Alfredo de Oliveira, meu avô paterno, perdeu
os originais das quatro peças que havia escrito e vários roteiros de
teledramaturgia da TV Jornal do Commercio no Recife, do qual foi
superintendente. A água barrenta chegou ao teto da casa da Rua Doze de Outubro
no bairro dos Aflitos, de sugestivo nome.
Perto dali, minha mãe, na rua Viscondessa do Livramento, no
Derby, aos 14 anos, foi impelida a realizar um aventura. A sua tia, do outro
lado da Avenida Agamenon Magalhães, tipo uma Presidente Vargas, estava com a
casa intacta, por ser mais elevada. A sua prima grávida, Silvia Suassuna e o
seu saudoso companhiero Sérgio Suassuna, ilhados com a minha mãe, além do meu tio, o
caçula Petronilo Santa Cruz de Oliveira Filho, o Petrinho, do qual nunca digeri a partida aos 49, foram literalmente na enrascada com a água no pescoço,
tateando buracos e pontes para atravessar o canal.
Quando menino, no bairro de Boa Viagem, lembro o percurso da
minha casa às temerosas provas de fim de primeiro semestre no Colégio Santa
Maria durante o mês de junho. Carros com água na porta. Todo junho era isso. No
entanto, nunca sofri grandes cheias no Recife. Meu batismo de desespero com a
ansiedade das águas se deu já no Rio de Janeiro na enchente de abril de 2010,
uma experiência tão forte que comecei este blog, Riocife.
Numa ida à capital pernambucana por volta de 2010, li uma
matéria de jornal sobre cidades que desapareceriam em algumas décadas por
estarem abaixo do nível do mar, devido a uma previsão de aquecimento global bem
pior que a do verão carioca. Recife e Sydney estavam na lista de futuras
cidades submersas, projetei o fim da minha cidade querida com uma orquestra de
frevo resistindo tipo banda do Titanic, o último carnaval embaixo d’água no
sarrabulho da maré.
Alfredinho, cuidado com o sarrabulho! Minha mãe costumava me
alertar quando me arvorava já na carreira rumo ao mergulho. Um pai de santo me
falara, eu filho de Iemanjá, o que me dava uma segurança tremenda, até hoje. Na
minha pré-adolescência, última fase do surf em Boa Viagem pré-tubarão, a galera
falava “vaca”, mas sempre me referi ao caldo, vaca como sarrabulho. Achei que
todo mundo falava assim, e por isso sempre precisei me explicar quando a
pronunciava. Descobri após gravar a música que é também um prato ibérico de carnes
tradicionalíssimo, tipo sarapatel, Buñuel que me ensinou no seu irresistível Meu Último Suspiro. Fico na dúvida se uma gravação do mestre Jackson do Pandeiro de mesmo nome se remete a ter sido convidado para comer este tipo de comida, ou se seria uma festa.
Da matéria do jornal, veio a ideia do frevo e comentei com
Sid Dantas, parceiro em Bispo, Mudânica Superativa e Sapo e Perereca sobre a
vontade de cantar um frevo distópico-elegíaco pra minha cidade. Outra cena que
me ajudou a letrar a canção foi aquela do final do Inteligência Artificial, com
Jude Law e o menino do I see dead people. Um submarino nas profundezas
encontrando os escombros de Manhattan. Imaginei-me naquele módulo tipo 20 mil
léguas submarinas passeando pelo telhado do Teatro Santa Isabel, o baobá da
Praça da República, o Acaiaca, os mercados.
Lembro um fim de semana ainda em Vila Isabel quando Sid me
enviou a melodia toda pronta e majestosa por email. Na rede azul da varanda das
plantas da rua Torres Homem me prometi que só me levantaria com a letra pronta.
Não demorou tanto. Vibrei quando consegui a rima disse-me-disse com Recife, e a
imagem de “a tuba que mergulha demais no refrão”. Na época descobrindo Manoel de Barros, mandei
um “vem me navegar, Beira-Rio, Maré”.
O frevo é um gênero muito caro a mim e a minha família. Meu avô Alfredo foi o fundador do Baile Municipal do Recife, tradicional baile carnavalesco quando secretário de cultura de lá. Valdemar de Oliveira, meu tio avô, irmão de Alfredo, escreveu um ensaio seminal intitulado Frevo, Capoeira e Passo. Quando Spok e sua Orquestra o comentou num show no antigo Canecão, tomei um susto. China recentemente no excelente podcast O Som a Pino , da Roberta Martinelli, citou Valdemar quando falou sobre a versão de frevo que fez para Deixe-se Acreditar, da qual gostei muito, e Hardcore Brasileiro. Meu tio-vô também compunha e tocava piano muy bien. O seu irmão Walter era cunhado do craque Nelson Ferreira, o nosso Pixinguinha do Frevo, com quem Valdemar costumava se abraçar com projetos teatrais e musicais. Meu pai, afilhado de Valdemar, costumava cantar quando altinho um frevo triste lindíssimo do tio Vavá que ainda vou gravar antes de partir.
Antônio Maria era primo legítimo do meu avô materno,
Petronilo Santa Cruz de Oliveira. Exatamente, a árvore da azeitona oliva cristã
nova está nas raízes de ambos os lados. O vô Petro conviveu com o Maria na
infância e adolescência na Usina Cachoeira Lisa em Gameleira/PE e nos contava
as histórias confessáveis e as de fazer Erika Lust corar. Há várias crônicas
deliciosas do Maria no seu recente livro de inéditas Vento Vadio, que ganhei de
aniversário da minha bem-amada ano passado, e faço questão de lê-lo devagar com
medo de acabar. Maria ficou conhecido pelos sambas-canções, mas escreveu frevos
da série “é de fazer chorar”.
As principais referências para Sid e eu foram os frevos do
Valdemar de Oliveira, Nelson Ferreira, Antônio Maria e do Edu Lobo, cujo pai,
Fernando Lobo, também pernambucano, era amigo-irmão do Maria. Você Está
Sozinha, “Carnaval na Lua”, assim chamarei a inédita do tio-vô, Frevo da
Saudade, Frevo n.2 , No Cordão da Saideira e Frevo de Itamaracá. Ou seja, nossa
onda era um frevo-canção tradiça, porém harmonicamente sofisticado, todavia sem
pretensões contemporâneas de temperar com brega-trance, funk melody, música
cigana, ou algo do tipo. Nada contra, tá?
A banda Empenha começou a ensaiá-la com orquestração de guitarras, baixo e bateria. Tocamos em alguns shows, porém sabia que não poderia ser gravada assim. Quando Henrique Albino se aproximou da Orquestra Contemporânea de Olinda, dos amigos Tiné e Gilu Amaral, tomei coragem de perguntar se ele toparia compor os arranjos de metais e executá-los. Foi antes da pandemia. O trabalho ficou bem melhor que a encomenda. Espero um dia que a Praia Vermelha lance a guia só dos metais, uma loucura de precisão e técnica. Fico muito feliz que Sarrabulho tenha a assinatura deste que considero um dos mais inventivos metaleiros do país. Ele nos presenteou com um vídeo sobre a canção que começa: “Acordai-vos!..”, tá no nosso Insta.
A gravação da base se deu sob as batutas do nosso produtor Bruno Villar em um estúdio muito aconchegante na Tijuca, o Locomotiva, do educado e dedicado Sidney Sohn. A base clássica do Empenha gravou: Leo Graever na batera, Jorge Esteves no baixo, Zartinho nas guitarras e eu na voz. Bruno Villar fez comigo os vocais.
Considero este frevo minha melhor letra em melodia pronta, e a melhor gravação do Praia Vermelha, por isso a elegemos o nome de nosso primeiro EP. A história da sessão de fotos para a capa deste EP cabe em outra crônica, mas adianto aqui.
Zartinho, o Moisés Nunes, amigo-irmão, diretor musical e proprietário do Praia Vermelha Estúdios S/A me alertou que não poderíamos escolher imagens ao léu no google sobre sarrabulhos no mar e inserir como capa devido aos direitos autorais e coisa e tal. Portanto, em uma mísera fração de horas numa tarde dia de semana, entre trabalho e pegar os meninos na escola, fomos à própria Praia Vermelha com figurinos e uma câmera à prova d'água. Nossa sorte é que naquele mar geralmente flat, havia umas marolas que dariam para encenar, e tomar de verdade!, sarrabulhos. Os banhistas nada entenderam, eu de blusa e camisa social entrando n'água. Insatisfeitos com a sessão, fomos à casa do Zartinho, ali mesmo na av. Pasteur, e onde ficam os estúdios, para tentar de dentro de sua piscina, que estava suja, takes de mim com capacete de moto embaixo d'água. Pensem numa coisa difícil, afundar com capacete numa piscina turva. Acho que a ideia do capacete é porque eu gostava da capa sui generis do Astronauta Tupy, do Pedro Luís e A Parede.
Como Sarrabulho foi composto em 2010, obviamente não imaginávamos o retrocesso trash pós 2013 das políticas ambientais e nos sentimos os próprios Orwell e Huxley quando a lançamos em pleno 2022, quando foi registrado na Amazônia, durante o primeiro trimestre, o recorde de desmatamento desde 2016 segundo o Inpe. 2022 também foi o ano do recorde de mortes por enchentes no Brasil. Só na terrível enchente do Recife no último maio foram 128 corpos encontrados, o pior desastre natural pernambucano em 50 anos. A comunidade onde participei de um projeto de extensão na graduação, Bulicomtu, chamada Jardim Monte Verde, no qual apresentava um programa de rádio, Bulicomtu, com meu outro amigo-irmão Izaias Francisco de Souza Jr., comunidade contígua ao Jordão Baixo, onde fiz residência médica de medicina de família e comunidade, pois bem, foi muito destruída pela chuva e eu dedico esta crônica para os familiares sobreviventes, os verdadeiros heróis brasileiros.
Acordai-vos para as emissões de CO2, para as bandeiras vermelhas na conta de luz, para a economia na vazão de vossas pias. Acordai-vos, senão levantareis com a água no pescoço, nadando na área de serviço para alcançar a boia do menino que ficou ali entretido em cima do móvel da sala vendo a banda passar embaixo d’água. Porque quando vem a enxurrada é que nem o frevo que, segundo Valdemar de Oliveira, não convida a multidão à dança. O frevo simplesmente arrasta.
Ficha técnica:
melodia e harmonia: Sidnei Dantas
letra: Alfredo de Oliveira Neto
arranjos gerais: Moisés Nunes, Jorge Esteves, Leo Graever e
Alfredo de Oliveira Neto
arranjo de sopros: Henrique Albino
produção musical: Bruno Villar e Moisés Nunes
mixagem e masterização: Bruno Villar e Moisés Nunes
gravado no Locomotiva Estúdio (Rio de Janeiro/RJ) e Estúdio
Carranca (Recife/PE) em 2018 e 2019
Voz: Alfredo de Oliveira Neto
Vocais: Bruno Villar e Alfredo de Oliveira Neto
Guitarra: Moisés Nunes
Bateria: Leo Graever
Baixo: Jorge Esteves
Sax alto, Sax tenor e Flauta: Henrique Albino
Trombone: Moab Nascimento
Trompete: Jonatas Araújo
Tuba: Alex Santana
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