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sábado, 9 de novembro de 2024

rolezinho em Serrambi: o conto do canto

Geralmente era noite alta e após vários pedidos, ele pegava o violão, apoiava o uísque num porta-copos de uma mesa grande de centro, conferia a afinação no mi maior e, nos primeiros acordes, minha atenção se voltava aos olhos da pequena plateia. Ia de criança a gente de 40 + e eu focava nas mulheres. Das meninas às mais velhas, era como se aqueles olhos retirassem a roupa após um dia de trabalho e elevassem as pernas, como se entrassem numa banheira quente, tomassem o primeiro gole da sexta à noite e esquecessem os aperreios na escola, as intrigas, as culpas e os boletos. Olhos de pôr-do-sol. Contemplei durante toda a meninice e adolescência aquele poder de alumbramento de Tio Duca, pai do meu melhor amigo de infância e ex-integrante de uma banda da jovem guarda recifense na década de 60, Os Primos.
Invariavelmente o repertório tinha um lugar cativo para You Can't Do That, dos Beatles, e ele seguia com uma introdução de um dó maior para um mi com sétima na sétima casa, um rock clássico mi - lá - si, com uma segunda parte inventiva em sol sustenido, inventiva para o Lennon daquela época. Uma letra boba de ciúmes de um garoto pela namorada, que não poderia dançar com outro, bem 50's e 60's. O grande trunfo do Tio Duca era o ritmo da mão direita e o baixo que fazia nos acordes e, obviamente, sua voz rouca afinada e seu porte galã 60s, de botas, tipo Springsteen.

Bruno, o seu filho, e eu, apesar de sermos de 78, na pré-adolescência colamos nos 60s e 70s. Até gostávamos de Nirvana, Pearl Jam, Guns e Metallica, porém o que emocionava mesmo era Chuck Berry, Little Richard, Elvis, Beatles, Stones e Doors. Decidimos montar uma banda focada nestes gringos e na jovem guarda, tendo o conjunto do pai como referência local, demos o criativo nome de The Primos, o "the" para sugerir que cantávamos também em inglês. como já escrevi em Medo Medieval, durou do final do fundamental até o fim do ensino médio e o nosso ápice foi tocar na formatura do terceiro ano do Colégio Santa Maria em Boa Viagem, Recife.
Insistimos tanto em pegar a batida de Tio Duca, que You Can't Do That entrou no nosso repertório, eu adorava tocar esta música como baixista.
São José da Coroa Grande é a última praia do litoral sul pernambucano, fronteira com Alagoas. A minha praia de veraneio desde a barriga da minha mãe até o final da adolescência. Meu primo-irmão Lula, que também tocava no The Primos, tinha casa lá, assim como o Tio Duca, que por acaso era primo de segundo grau de Lula. Enfim, em todo janeiro a primaiada parte de mãe e amigos invadiam aquele paraíso cheio de corais. Primeiros porres e beijos, todos nós aprendemos a dirigir carros em São José.
As praias mais famosas do litoral sul pernambucano hoje em dia são Porto de Galinhas e a Praia dos Carneiros, que pertence ao município de Tamandaré. Naquela época, Tamandaré era um point mais legal que Porto, e Carneiros era uma praia deserta que ninguém se arvorava a ir. No litoral sul,  além das menos conhecidas, como Gaibu e Calhetas, tem a praia de Serrambi, situada entre Maracaípe, a praia de surfe perto de Porto, e a pequena Toquinho, que eu achava quando pequeno que era uma homenagem ao parceiro do Vinícius.

Por um acaso algorítmico no Airbnb, fui parar em Serrambi em um verão longíquo daqueles, poucos anos atrás. Já com filhos pequenos, juntei-me com a família de um amigo e, para economizarmos, pegamos uma casa mais recuada da orla. Serrambi ficou conhecido nacionalmente devido ao caso horroroso das duas meninas, que até hoje, mesmo passados 20 anos, não foi encerrado, mas que ficou emblemático, pois tem a ver com a cultura da elite nordestina: farras adolescentes na casa de praia dos pais. Todo o litoral nordestino possui talvez uma desigualdade tão escancarada quanto Leblon e Rocinha, mansões e lanchas à beira-mar, e quem vive ali de fato se contenta com casebres recuados e jangadas de pau.
Chegamos e montamos um cooler com boas cervejas, carregamos o guarda-sol e cadeiras da casa para conferir o mar. Passei por uma ruela em que dava para ver, entre plantas ornamentais, uma grande casa em que adolescentes de bermudas de linho e camisas sociais dobradas antes dos cotovelos conversavam com garotas de cabelos bravamente escovados ao som de Sunday Bloody Sunday em ritmo de axé. Pura sublimação histórica, o domingo sangrento entre católicos e protestantes irlandeses lá na década de 70 encontrara sua redenção tropical entre mauricinhos e patricinhas pernambucanas no século XXI em Serrambi.  Na beira-mar, ao sentarmos, em vez do horizonte marítimo benzodiazepínico e inspiração pulmonar profunda, lanchas ancoradas, uma ao lado da outra e jet skis ziguezagueando, quase um tapume de uma imobiliária anunciando as maravilhas de se adquirir um terreno chamado Mar. Quando mergulhamos no "terreno", pedindo licença às lanchas, óleo diesel na maré.
Contentamo-nos com picolé e cerveja e nos percebemos uma classe média dando um rolezinho no Praia Shopping Serrambi.
De volta à nossa casinha, peguei o violão e comecei a brincar com a harmonia de You Can't Do That no jeito Tio Duca de tocar, "Vou dar um rolé..." Comecei algumas estrofes e terminei logo em seguida. A banda Empenha, que se chama hoje Praia Vermelha, adotou-a rapidamente, pois se encaixava muito na nossa base rock. A segunda parte da música só veio anos depois, para melhorar a dinâmica e diminuir a chatice. Mostrei para o Zartinho (Moisés Nunes) a ideia melódica e ele harmonizou. Achei conveniente temperar com romance uma música cômico-social, porém seguindo o tom, entre um classe média e uma patricinha.
"Ponho minha camisa UV só pra te ver passar" vem da moda no litoral nordestino, no máximo uns 15 anos para cá, de os homens, de classes diferentes, todos usarem este tipo de malha durante o dia. O clássico Dia Branco, de Geraldinho, entrou na letra pois, na época da composição, Zartinho e eu estávamos fissurados, ouvindo toda a discografia dele.
Os baculejos, ação ostensiva da polícia no corpo de outrem à procura de tóxicos, eram comuns em não brancos e não classe média nas festinhas nos centros de Tamandaré e São José. Gostei da cena de o rapaz enfrentar uma dura ao ultrapassar o limite de castas e dar um beijo numa boyzinha. Fiquei também feliz em rimar o verso de Geraldinho com as minhas praias queridas do litoral sul. À propósito, o primeiro show que fui pós pandemia foi Chico César e Geraldo Azevedo no Circo Voador, tenho fotos, ainda de máscara chorando todo o litoral. Showzaço, vi novamente no primeiro Rock the Mountain. Duas vozes e dois violões, Paraíba e Pernambuco, explodindo o coração de todos em orquestra.
Apesar de, para a maioria do Brasil, jangada remeter a embarcações simples dos pescadores de Caymmi, de vela e madeira, em Pernambuco jangada também é uma lanchinha pequena, cerca de 16 pés, que a classe média costuma comprar se juntando a outras famílias, para irem aos paradisíacos "pocinhos", pontos rasos de areia no meio dos corais com águas cristalinas, é necessário destreza para, com o motor de poupa quase todo levantado, livrar o casco dos arrecifes, a depender do nível da maré, ao tentar entrar no pocinho. Por isso, "eu sei pilotar jangada".




Para a gravação assumimos um clima sábado de praia. Inicialmente, a ideia era terminar a música numa rodinha de violão na própria Praia Vermelha, na Urca, com a barulheira natural do vento, mar, praieiros e banhistas, mas não conseguimos produzir. No entanto, levamos ao estúdio a nossa memória dos pregadores da beira-mar do nordeste e do Rio. Globo, mate, ostra e caldinho.
Bruno Villar novamente assina a produção e a ideia de trazer a diversão praiana foi dele. Acho que Zartinho teve a ideia do coro na introdução "Serrambi" e da brincadeira vocal, que ficou ótima em "que rolé? que rolé? que rolé?". Eu gosto do tecladinho em vibrato, bem Renato e seus Blue Caps o qual, depois da Jovem Guarda, foi amplamente usado no brega.
A música foi toda gravada em várias sessões durante o ano de 2023 no estúdio Praia Vermelha, o nosso reduto e bunker.
A base se deu com Leo Graever na batera, Brenda Costa no baixo, os baianos Daniel e Fernando nas guitarras e Zartinho nos teclados. Nos vocais, Thaís Façanha, Laís Pimenta. Brenda e eu.
Apesar da experiência de se sentir dando um rolezinho no litoral, estas praias continuam lindas de morrer, com a água do mar quentinha, o abraço no balanço de ser e falar dos nativos e aquela vontade infinita de virar árvore ao curtir uma brisa numa rede amarrada entre coqueiros. 
Uma briga recente no bairro da Gávea, aqui no Rio, entre moradores e construtoras que insistem em avançar tratores em direção à floresta, justificando empreendimentos eco light de morar bem, me remontam às inúmeras tentativas de abocanhar pedaços de areia, céu e mar pelos resorts e outros lobos vestidos de cordeiros no Nordeste. Rolezinho em Serrambi brinca com a classe média branca que, segundo Jessé de Souza, fica achatada, na parte de cima quer se colar à elite e por isso defende os privilégios dos ricos, apesar de saber que dificilmente encontrará um buraco para subir, enquanto que seus pés tentam se livrar das camadas mais baixas, onde há muito mais buracos pra cair. É a classe média que ao se sentar na areia, e não contemplar o horizonte, dá graças a Deus de estar próxima às lanchas.   




Ficha técnica

bateria: Leo Graever
baixo: Brenda Costa
guitarras: Daniel Baiano e Fernando Baiano
teclado: Moisés Nunes
vocais: Thaís Façanha, Laís Pimenta, Brenda Costa e Tufa
voz: Tufa
produção: Bruno Villar e Moisés Nunes



Rolezinho em Serrambi
(Tufa e Moisés Nunes)

E7

Vou dar um rolé
                                             A
Vou dar um rolé em Serrambi
                          E7
vou dar um um rolé, um rolezinho
                                        A
um rolezinho em Serrambi
               B                       A                           E7     B
tomo cerveja importada, mas nao tenho jet ski
             E7                                                             A
Da mansão na beira-mar escapava um som  qualquer (2x)
       B                                    A                         E7
era Sunday Bloody Sunday       suingado no axé 

A
Mas me sento nessa areia
               C#m
mesmo sendo um sem-terra na maré cheia
G                                                           Bm
ponho minha camisa UV só pra te ver passar
A
como no canção do Dia Branco
          C#m
eu enfrento um baculejo pra te dar um beijo
               G
Pro que der e vier
                                                  B
em Gaibú, Tamandaré e São José


                        E7
Vou dar um rolé
                                             A
Vou dar um rolé em Serrambi
                          E7
vou dar um um rolé, um rolezinho
                                        A
um rolezinho em Serrambi
          B                            A
já viajei pra Nova Iorque
                                          E7
mas lua de mel não foi Paris


solo


A
Mas me sento nessa areia
             C#m
mesmo sendo um sem-terra na maré cheia
G                                                              Bm
ponho minha camisa UV só pra te ver passar
A
como no canção do Dia Branco
C#m                                                                G
eu enfrento um baculejo pra te dar um beijo

Pro que der e vier
                                                   B
em Gaibu, Tamandaré e São José


                 E7
O guarda-sol é protetor
                                    A
tem caranguejo e picolé (2x)
         B                              A
no rasinho é tanta lancha
                             E7       B
óleo diesel na maré

                        E7
Vou dar um rolé
                                             A
Vou dar um rolé em Serrambi
                          E7
vou dar um um rolé, um rolezinho
                                        A
um rolezinho em Serrambi
           B                       A
Eu sei pilotar jangada
                                             E7
mas pra alugar só dá pro esqui

domingo, 4 de setembro de 2022

sarrabulho: o conto do canto

 

Na cheia de 66, Alfredo de Oliveira, meu avô paterno, perdeu os originais das quatro peças que havia escrito e vários roteiros de teledramaturgia da TV Jornal do Commercio no Recife, do qual foi superintendente. A água barrenta chegou ao teto da casa da Rua Doze de Outubro no bairro dos Aflitos, de sugestivo nome.

Perto dali, minha mãe, na rua Viscondessa do Livramento, no Derby, aos 14 anos, foi impelida a realizar um aventura. A sua tia, do outro lado da Avenida Agamenon Magalhães, tipo uma Presidente Vargas, estava com a casa intacta, por ser mais elevada. A sua prima grávida, Silvia Suassuna e o seu saudoso companhiero Sérgio Suassuna,  ilhados com a minha mãe, além do meu tio, o caçula Petronilo Santa Cruz de Oliveira Filho, o Petrinho, do qual nunca digeri a partida aos 49, foram literalmente na enrascada com a água no pescoço, tateando buracos e pontes para atravessar o canal.

Quando menino, no bairro de Boa Viagem, lembro o percurso da minha casa às temerosas provas de fim de primeiro semestre no Colégio Santa Maria durante o mês de junho. Carros com água na porta. Todo junho era isso. No entanto, nunca sofri grandes cheias no Recife. Meu batismo de desespero com a ansiedade das águas se deu já no Rio de Janeiro na enchente de abril de 2010, uma experiência tão forte que comecei este blog, Riocife

Numa ida à capital pernambucana por volta de 2010, li uma matéria de jornal sobre cidades que desapareceriam em algumas décadas por estarem abaixo do nível do mar, devido a uma previsão de aquecimento global bem pior que a do verão carioca. Recife e Sydney estavam na lista de futuras cidades submersas, projetei o fim da minha cidade querida com uma orquestra de frevo resistindo tipo banda do Titanic, o último carnaval embaixo d’água no sarrabulho da maré.

Alfredinho, cuidado com o sarrabulho! Minha mãe costumava me alertar quando me arvorava já na carreira rumo ao mergulho. Um pai de santo me falara, eu filho de Iemanjá, o que me dava uma segurança tremenda, até hoje. Na minha pré-adolescência, última fase do surf em Boa Viagem pré-tubarão, a galera falava “vaca”, mas sempre me referi ao caldo, vaca como sarrabulho. Achei que todo mundo falava assim, e por isso sempre precisei me explicar quando a pronunciava. Descobri após gravar a música que é também um prato ibérico de carnes tradicionalíssimo, tipo sarapatel, Buñuel que me ensinou no seu irresistível Meu Último Suspiro. Fico na dúvida se uma gravação do mestre Jackson do Pandeiro de mesmo nome se remete a ter sido convidado para comer este tipo de comida, ou se seria uma festa.

Da matéria do jornal, veio a ideia do frevo e comentei com Sid Dantas, parceiro em Bispo, Mudânica Superativa e Sapo e Perereca sobre a vontade de cantar um frevo distópico-elegíaco pra minha cidade. Outra cena que me ajudou a letrar a canção foi aquela do final do Inteligência Artificial, com Jude Law e o menino do I see dead people. Um submarino nas profundezas encontrando os escombros de Manhattan. Imaginei-me naquele módulo tipo 20 mil léguas submarinas passeando pelo telhado do Teatro Santa Isabel, o baobá da Praça da República, o Acaiaca, os mercados.

Lembro um fim de semana ainda em Vila Isabel quando Sid me enviou a melodia toda pronta e majestosa por email. Na rede azul da varanda das plantas da rua Torres Homem me prometi que só me levantaria com a letra pronta. Não demorou tanto. Vibrei quando consegui a rima disse-me-disse com Recife, e a imagem de “a tuba que mergulha demais no refrão”.  Na época descobrindo Manoel de Barros, mandei um “vem me navegar, Beira-Rio, Maré”.

O frevo é um gênero muito caro a mim e a minha família. Meu avô Alfredo foi o fundador do Baile Municipal do Recife, tradicional baile carnavalesco quando secretário de cultura de lá. Valdemar de Oliveira, meu tio avô, irmão de Alfredo, escreveu um ensaio seminal intitulado Frevo, Capoeira e Passo. Quando Spok e sua Orquestra o comentou num show no antigo Canecão, tomei um susto. China recentemente no excelente podcast O Som a Pino , da Roberta Martinelli, citou Valdemar quando falou sobre a versão de frevo que fez para Deixe-se Acreditar, da qual gostei muito, e Hardcore Brasileiro. Meu tio-vô também compunha e tocava piano muy bien. O seu irmão Walter era cunhado do craque Nelson Ferreira, o nosso Pixinguinha do Frevo, com quem Valdemar costumava se abraçar com projetos teatrais e musicais. Meu pai, afilhado de Valdemar, costumava cantar quando altinho um frevo triste lindíssimo do tio Vavá que ainda vou gravar antes de partir.

Antônio Maria era primo legítimo do meu avô materno, Petronilo Santa Cruz de Oliveira. Exatamente, a árvore da azeitona oliva cristã nova está nas raízes de ambos os lados. O vô Petro conviveu com o Maria na infância e adolescência na Usina Cachoeira Lisa em Gameleira/PE e nos contava as histórias confessáveis e as de fazer Erika Lust corar. Há várias crônicas deliciosas do Maria no seu recente livro de inéditas Vento Vadio, que ganhei de aniversário da minha bem-amada ano passado, e faço questão de lê-lo devagar com medo de acabar. Maria ficou conhecido pelos sambas-canções, mas escreveu frevos da série “é de fazer chorar”.

As principais referências para Sid e eu foram os frevos do Valdemar de Oliveira, Nelson Ferreira, Antônio Maria e do Edu Lobo, cujo pai, Fernando Lobo, também pernambucano, era amigo-irmão do Maria. Você Está Sozinha, “Carnaval na Lua”, assim chamarei a inédita do tio-vô, Frevo da Saudade, Frevo n.2 , No Cordão da Saideira e Frevo de Itamaracá. Ou seja, nossa onda era um frevo-canção tradiça, porém harmonicamente sofisticado, todavia sem pretensões contemporâneas de temperar com brega-trance, funk melody, música cigana, ou algo do tipo. Nada contra, tá?

A banda Empenha começou a ensaiá-la com orquestração de guitarras, baixo e bateria. Tocamos em alguns shows, porém sabia que não poderia ser gravada assim. Quando Henrique Albino se aproximou da Orquestra Contemporânea de Olinda, dos amigos Tiné e Gilu Amaral, tomei coragem de perguntar se ele toparia compor os arranjos de metais e executá-los. Foi antes da pandemia. O trabalho ficou bem melhor que a encomenda. Espero um dia que a Praia Vermelha lance a guia só dos metais, uma loucura de precisão e técnica. Fico muito feliz que Sarrabulho tenha a assinatura deste que considero um dos mais inventivos metaleiros do país. Ele nos presenteou com um vídeo sobre a canção que começa: “Acordai-vos!..”, tá no nosso Insta.


A gravação da base se deu sob as batutas do nosso produtor Bruno Villar em um estúdio muito aconchegante na Tijuca, o Locomotiva, do educado e dedicado Sidney Sohn. A base clássica do Empenha gravou: Leo Graever na batera, Jorge Esteves no baixo, Zartinho nas guitarras e eu na voz. Bruno Villar fez comigo os vocais.

Considero este frevo minha melhor letra em melodia pronta, e a melhor gravação do Praia Vermelha, por isso a elegemos o nome de nosso primeiro EP. A história da sessão de fotos para a capa deste EP cabe em outra crônica, mas adianto aqui.

Zartinho, o Moisés Nunes, amigo-irmão, diretor musical e proprietário do Praia Vermelha Estúdios S/A me alertou que não poderíamos escolher imagens ao léu no google sobre sarrabulhos no mar e inserir como capa devido aos direitos autorais e coisa e tal. Portanto, em uma mísera fração de horas numa tarde dia de semana, entre trabalho e pegar os meninos na escola, fomos à própria Praia Vermelha com figurinos e uma câmera à prova d'água. Nossa sorte é que naquele mar geralmente flat, havia umas marolas que dariam para encenar, e tomar de verdade!, sarrabulhos. Os banhistas nada entenderam, eu de blusa e camisa social entrando n'água. Insatisfeitos com a sessão, fomos à casa do Zartinho, ali mesmo na av. Pasteur, e onde ficam os estúdios, para tentar de dentro de sua piscina, que estava suja, takes de mim com capacete de moto embaixo d'água. Pensem numa coisa difícil, afundar com capacete numa piscina turva. Acho que a ideia do capacete é porque eu gostava da capa sui generis do Astronauta Tupy, do Pedro Luís e A Parede.

    

Como Sarrabulho foi composto em 2010, obviamente não imaginávamos o retrocesso trash pós 2013 das políticas ambientais e nos sentimos os próprios Orwell e Huxley quando a lançamos em pleno 2022, quando foi registrado na Amazônia, durante o primeiro trimestre, o recorde de desmatamento desde 2016 segundo o Inpe. 2022 também foi o ano do recorde de mortes por enchentes no Brasil. Só na terrível enchente do Recife no último maio foram 128 corpos encontrados, o pior desastre natural pernambucano em 50 anos. A comunidade onde participei de um projeto de extensão na graduação, Bulicomtu, chamada Jardim Monte Verde, no qual apresentava um programa de rádio, Bulicomtu, com meu outro amigo-irmão Izaias Francisco de Souza Jr., comunidade contígua ao Jordão Baixo, onde fiz residência médica de medicina de família e comunidade, pois bem, foi muito destruída pela chuva e eu dedico esta crônica para os familiares sobreviventes, os verdadeiros heróis brasileiros. 

Acordai-vos para as emissões de CO2, para as bandeiras vermelhas na conta de luz, para a economia na vazão de vossas pias. Acordai-vos, senão levantareis com a água no pescoço, nadando na área de serviço para alcançar a boia do menino que ficou ali entretido em cima do móvel da sala vendo a banda passar embaixo d’água. Porque quando vem a enxurrada é que nem o frevo que, segundo Valdemar de Oliveira, não convida a multidão à dança. O frevo simplesmente arrasta.


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Ficha técnica:

melodia e harmonia: Sidnei Dantas

letra: Alfredo de Oliveira Neto

arranjos gerais: Moisés Nunes, Jorge Esteves, Leo Graever e Alfredo de Oliveira Neto

arranjo de sopros: Henrique Albino

produção musical: Bruno Villar e Moisés Nunes

mixagem e masterização: Bruno Villar e Moisés Nunes

gravado no Locomotiva Estúdio (Rio de Janeiro/RJ) e Estúdio Carranca (Recife/PE) em 2018 e 2019

 

Voz: Alfredo de Oliveira Neto

Vocais: Bruno Villar e Alfredo de Oliveira Neto

Guitarra: Moisés Nunes 

Bateria: Leo Graever

Baixo: Jorge Esteves

Sax alto, Sax tenor e Flauta: Henrique Albino

Trombone: Moab Nascimento

Trompete: Jonatas Araújo

Tuba: Alex Santana





terça-feira, 14 de junho de 2022

Medo Medieval (translation)

 medo medieval (Alfredo de Oliveira Neto)

Medieval Fear

to Fernand Braudel


(1)

Invista no vinho branco da Ístria

Invest in Istrian white wine

   

Insista no extremo norte capitalista

Insist on the capitalist extreme north


Elã! O verde trigo da Pérsia

Cheer!, the green wheat of Persia



Conversa no banco da praça russa

a chat on the bench in the russian square


Mercado, ria!

Market, laugh!


Vem, capital

Come, capital



De poesia

Of poetry


Chega de tanto lucro irreal (3x)

Enough of so much unreal profit (3X)



(2)

Veneza comprou a seda da China

Venice bought silk from China


Me ensina usura que não se esqueça

Teach me usury that cannot be forgotten


Milito no rico mundo da troca

The rich world of exchange is my flag



Invoca, me peça mais gasolina

Are you teasing me? So, ask me for more gas


Pirata, ria!

Pirate, laugh!


Bem virtual

Too much virtual


À revelia

Even if contrary to


Do nosso medo medieval (3x)

Our medieval fear (3x)

            (guitar solo)

Repeat  (2)

choir





Bispo (translation)

 Bispo (Sidnei Dantas /Alfredo de Oliveira Neto)


Dizem que ele vem de Japaratuba

People say that he comes from Japaratuba*

         

Mas poderia dizer

But he could say


apenas apareci

I just showed up


Borda seu universo em cada traço

Embroider his universe in every line dash



Que segue a risca do céu

That follows the line of the sky


No seu abismo era rei

In his abyss he was king



Se você mandar fazer

If you demand that I do



Um barco para me salvar

A boat to save me


Fico escutando você

I keep listening to you


Durmo de olhos pro mar

I sleep with my eyes to the sea



Borda um manto verde de mangas longas

Embroider a green long-sleeved mantle


Com bandeirinhas de cor

With little colored flags 


São parecidas

They are similar


Broche de almirante, casa caiada

Navy admiral brooch, lime painted house


Da nossa federação

Of our federation


Terra arrasada

Scorched earth


Ouço o que devo fazer

I hear what should I do


Morro pra me apresentar

I die to introduce myself


Quando vão compreender?

When will they understand?


Solto o estandarte no ar

I throw the insignate into the air


Desengancho de tudo isso

I get rid of all this


Me convenço, perco o juízo

I convince myself, I lose my mind


De ver a Praia Vermelha**

Seeing the “Red Beach”


E o engenho de dentro*** de mim

And the ingenuity inside of me





*a city from Sergipe State, northeast of Brazil

** a beautiful beach in Rio de Janeiro, Brazil, in the neighborhood of Urca, where there are still two large psychiatric hospitals

***Engenho de Dentro (“Mill from Within”) is also a name of a neighborhood in Rio de Janeiro, where there is the first psychiatric asylum of Brazil, opened in 1852, but since 2004 renamed to Nise da Silveira Institute, a tribute to that woman psychiatrist who revolutionized mental health care in Brazil, introducing art therapy in the 40's. In 2021, hospital discharge was granted to the last patient who was hospitalized, thus ending psychiatric hospitalization at this Institute








Ágatha (translation)

 Ágatha* (Alfredo de Oliveira Neto – Tufa e Moisés Nunes – Zartinho)




eu vou furar meu balão amarelo**                       I'm going to pop

my yellow balloon   

                      

acabou o brinquedo                                            child's play is over

                              

ninguém fica mais velho                                      no one gets older


me esparramar nas ruas sem fuzis               sprawl out on the streets

without rifles


quem for de lá pode chegar aqui***     whoever is from there

can get here


amanhecer e somente ouvir****                        at dawn and just listen


o rouxinol, pardal e bem-te-vi     the nightingale, sparrow and

welcome to you



aqui, o Alemão tem cor preta                  here, the German

has black color

         

e o senhor não se esqueça                                and your lordship

don't forget


suas mãos, minha dor                                         your hands, my pain


aqui, o Alemão tem cor preta                      here, the German

has black color

                                 

nem que tudo se inverta                                  even if everything

is reversed

                             

vou cantar minha cor                                         I will sing my color


            

quero dançar na ponta dos meus pés*****          I want to dance

on my tiptoes

                 

vou me jogar nos curuminso, convés          I'm gonna throw myself

on the deck with curumins

                 

na Fazendinhaa vou cavalgar                                in the Little Farm

I will ride

             

na amarelinha                                                    in the hopscotch

                

pular do céu no mar                                          jump from the sky

to the sea




* Ágatha, an 8-year-old black girl, was murdered by the police in 2019 when she was sitting next to her grandfather in a van, going up the hill where she lived, up in a large complex of slums in the city of Rio de Janeiro, called German Complex

** there is a picture that was featured on the news of her holding a yellow balloon and smiling

**** there are invisible territorial boundaries within German Complex that residents on one side cannot cross to the other, as they are territories commanded by rival drug trafficking factions

o Oca dos Curumins (“hollow of indigenous children”) is a cultural center that offers capoeira, dance and theater for children at the German Complex, where Ágatha used to practice capoeira

a   the name of the sub-neighborhood, “Little Farm”, where Ágatha lived