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quinta-feira, 31 de março de 2022

o conto do canto: Bispo

2013, exposição da Yayoi Kusama no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Sid Dantas e eu lá fomos após um ensaio do Harmonia Enlouquece no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, localizado no bairro adjacente, na Saúde. Sid é andarilho, mesmo segurando um case de violão, provavelmente fomos a pé.

Vale muito conhecer o CCBB Rio, um dos centros culturais mais bonitos que já fui, o prédio da primeira agência do Banco do Brasil, enorme, inaugurada em 1808. O nome da exposição era Obsessão Infinita, a japonesa Kusama nos atordoou profundamente com a obsessão com esferas, bolas coloridas de tudo que é tamanho e cor. Ela sofria de esquizofrenia e foi submetida a várias internações. Lembro da vertigem que tivemos na saída, selamos que faríamos uma música sobre este universo da arte e loucura, aliás tudo a ver com a banda que Sid havia iniciado em 2001, junto com Kiko Sayão e Hamilton de Jesus Assumpção, na qual eu toco percussão desde 2008.

O Harmonia Enlouquece é uma das maiores expressões da arte e loucura na música brasileira, sou membro e fã. Ainda de pé, #Resistir #Ocupar, com o quarto disco autoral na agulha, possui um histórico de abertura para shows de Gilberto Gil, Maria Bethânia, Luiz Melodia, Tom Zé e outros e outras gigantes da música brasileira, apresentações em vários estados, além de Argentina e Uruguai. Sufoco da Vida virou música de novela. Hamilton de Jesus, compositor e cantor, é um patrimônio nacional, ainda não devidamente reconhecido, mas certamente o será, e espero muitíssimo que em vida.

Sid Dantas é a única pessoa que conheço que fez três graduações, psicologia e duas em música, além de ter especialização em musicoterapia. Foi ele quem primeiro percebeu o talento do Hamilton. Sid é o meu amigo que mais entende de música e que melhor toca, possui uma paciência infinita com a minha imaturidade técnica, mas percebo que acha graça nos meus atrevimentos melódicos.

Da parceria com Sid, já havia saído um baião, Mudânica Superativa, e um samba, Sapo e Perereca, que tem o Hamilton também como parceiro, ambas já gravadas no 3o disco do Harmonia Enlouquece. Portanto, estávamos indo para o nosso terceiro trabalho e o tema estava claro. Fiz uma melodia e letra que seguia por um toré indígena, como se Kusama nos libertasse da prisão do racional e seguíssemos nas correntezas do imprevisível. Daí, acho que foi o Sid quem trouxe a ideia de fazermos algo sobre arte e loucura brasileira e um dos maiores nomes das artes plásticas é o Arthur Bispo do Rosário, quem Sid conheceu quando estagiou no curso de psicologia na Colônia Juliano Moreira, onde o Bispo passou décadas numa cela na ala dos mais perigosos. A melodia e letra que havíamos feito para Kusama combinamos de ser a introdução da música que finalmente se chamou Bispo e só foi lançada oficialmente em janeiro de 2022, porém sem a introdução de Kusama, a qual ainda a ampliaremos em uma nova canção.



Sid mandou para mim a parte A e B do Bispo pronta, e que vinha com os primeiros versos: Dizem que ele vem de Japaratuba / Mas poderia dizer / Apenas apareci, os quais deixei na letra porque trazia o nome de cidade natal do Bispo, em Sergipe, que em tupi quer dizer conjunto de terrenos arenosos. E “apenas apareci” ele costumava dizer quando perguntavam de onde ele veio, a primeira crise dele se deu, inclusive, durante suas aparições em igrejas no Centro do Rio, anunciando-se como Jesus.

Para fazer a letra, assisti ao documentário O Prisioneiro da Passagem, do Hugo Denizart, psicanalista e cineasta, que o entrevista dentro de sua cela. As palavras desengancho, abismo, casa forte e terra arrasada, que estão na canção, eu coletei desse filme. Casa forte não tem a ver com o bairro da classe média recifense, o Bispo diz “a casa forte pertence a Cristo”.


Em um dos inúmeros tecidos que bordava para mantos e estandartes, geralmente há objetos, como bandeirinhas e broches, insígnias referente à Marinha, para a qual ele serviu quando jovem, além de várias frases místico-proféticas, como: “chamo pelas guias, desengancho, tenho ordens”.

O que mais me impactou no filme foi quando ele disse que só fazia aquilo tudo porque as vozes o obrigavam, e que se não o fizesse, no Juízo Final, iria para o inferno e seria castigado, portanto por vontade própria não faria nada daquilo, então acentuei isso em na parte B: Ouço o que devo fazer / Morro pra me apresentar / Quando vão compreender?

Há também uma passagem interessante em que ele relata que vem fazendo um barco para o Juízo Final, algo como o mito do Noé. E o barco é lindo, cheio de bandeirinhas: Se você mandar fazer / Um barco para me salvar / Fico escutando você / Durmo de olhos pro mar.

Ao terminar as letras das partes A e B, achei que precisava da parte C, que deveria extrapolar mais ainda a razão, uma parte em que fosse cantada em coro, delirante, para ajudar a diminuir o abismo do medo e da indiferença entre os ditos normais e anormais.

Lembro exatamente onde fiz a melodia e letra dessa parte, num sofá na sala do apê de Vila Isabel, bairro do coração no qual morei sete anos, estava pronto para ir a um show no Circo Voador, só não lembro qual: Desengancho de tudo isso / Me convenço, perco o juízo.


Eu sempre adorei o nome da praia famosa da Urca, Praia Vermelha, que tem este nome nas barbas da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, de um Clube Militar, do Instituto Militar de Engenharia e de prédios residenciais de militares. Apesar da fissura, nenhum deles pode prender, torturar ou exilar a danada da praia. 

A faculdade de medicina da UFRJ pré-ditadura também era lá, ainda resistem outros campus da UFRJ e um da UniRio, neste inclusive tem o prestigiado e subversivo curso de artes cênicas. Bispo do Rosário chegou a ser internado também no Instituto de Psiquiatria do Brasil, que fica no Campus da Praia Vermelha, como é chamado o da UFRJ. Por isso, usei praia vermelha como uma alucinação visual, pois, para quem não é do Rio e não sabe do nome dessa praia, não deixa de ser um nome delirante. Pelo mesmo motivo nomeamos o nosso atual coletivo musical que gravou o Bispo.


Já o Engenho de Dentro é o bairro do primeiro hospital psiquiátrico do Brasil, o Pedro II, de 1852, o qual, desde 2004, chama-se Instituto Municipal Nise da Silveira, uma homenagem à gigante da psiquiatria brasileira que revolucionou a saúde mental no país, introduzindo a arteterapia ainda na década de 40. Somente em 2021, a última alta hospitalar foi realizada, encerrando-se assim a larga história manicomial desse sanatório. Inclusive o próprio CCBB Rio, em 2021, hospedou uma excelente exposição sobre a Nise da Silveira e os grandes artistas plásticos que ela ajudou a despertar, como Adelina Gomes, Fernando Diniz, Carlos Pertuis e Emydgio de Barros.

Pois bem, na época da composição eu lia Dom Quixote e adorava como Cervantes usava as palavras engenho e empresa para representar criatividade e empenho para realizar um objetivo, respectivamente. Para um recifense, engenho sempre remete à organização social, política e econômica escravocrata de produção açucareira da época colonial. Então achei libertador este outro significado de engenho, e como o bairro carioca se chama Engenho de Dentro, adicionei o “de mim” para tentar representar o que o inquieto Bispo, que também esteve um tempo internado no Pedro II, sentia tudo aquilo: De ver a praia vermelha / E o engenho de dentro de mim.

Não lembro porque Hamilton de Jesus não quis cantar a música no Harmonia, só sei que não pegou nos ensaios, então levei para a banda Empenha, de médicos de família amigos que trabalhavam no bairro da Penha, e que hoje se chama Praia Vermelha. Tocamos exaustivamente Bispo e Medo Medieval por uns 5 anos até gravarmos em 2017 e 2018. Fizemos um arranjo meio pop jazz do qual gosto muito. Curto particularmente a bateria do Leo Graever, as respostas na guitarra e do solo do Fernando Baiano e a marcação do baixo do Jorge Maravilha.

Na parte instrumental mais jazzística, poderíamos ter gravado algum instrumento de sopro, mas não tivemos cacife, gastamos o nosso tesouro no arranjo e execução brilhantes de Henrique Albino e sua trupe no frevo Sarrabulho, também uma parceria com Sid.

Lembro perfeitamente das gravações de voz e vocais no HR estúdio na Tijuca, de frente para o Centro da Música Carioca Artur da Távola, onde também gravamos toda a percussão de Medo Medieval. Levei meu amigo irmão pernambucano Maneco Baccarelli, o melhor cantor da minha geração, para fazer os vocais, e me arrependo de ele não ter feito a voz. Bruno Villar, nosso produtor, inventou na hora os vocais, com referência Beatles, e gravou junto com Maneco. Eram uns três fraseados diferentes, consegui mal fazer um. Assim como no Medo Medieval, forço a voz, não gosto, principalmente do final quando tento oitavar “Vermeeeelha”, prefiro minhas gravações de Ágatha e Sarrabulho. No entanto, gosto muito da música Bispo, tem um compasso ternário que me lembra balcão de bar, tipo cena de comercial, amigos sentados caneca de chopp na mão, abraçados numa dancinha valseada de um lado pro outro.


Recomendo o longa nacional O Senhor do Labirinto, sobre a história do Bispo do Rosário, com uma interpretação louvável de Flávio Bauraqui fazendo o protagonista, adoraria se um dia a música chegasse aos ouvidos de toda a galera que fez esse filme.

Assim como Kusama e Hamilton de Jesus, Bispo do Rosário enfrentou suas mais aterrorizantes angústias utilizando a produção artística como elemento organizador da sua existência. E não tem nada mais subversivo do que resistir de dentro de uma cela manicomial, o cenário de exclusão mais lobotomizante que há, exercendo o ato mais potente e transformador da humanidade, a criação, mesmo sendo obrigado por uma voz, mesmo não tendo consciência explícita disso. Ele simplesmente bordava o seu próprio universo e, no seu abismo, era um rei.





Bispo (Sidnei Dantas / Tufa)


Dizem que ele vem de Japaratuba

         

Mas poderia dizer


apenas apareci


Borda seu universo de cada traço


Que segue a risca do céu


No seu abismo era rei



Se você mandar fazer


Um barco para me salvar


Fico escutando você


Durmo de olhos pro mar



Borda um manto verde de mangas

Longas


Com bandeirinhas de cor


São parecidas


Broche de almirante, casa caiada


Da nossa federação


Terra arrasada


Ouço o que devo fazer


Morro pra me apresentar


Quando vão compreender


Solto o estandarte no ar



Desengancho de tudo isso


Me convenço, perco o juízo


De ver a Praia Vermelha


E o Engenho de Dentro de mim



  



 créditos:


melodia e letra: Sidnei Dantas e Alfredo de Oliveira Neto (Tufa)

arranjo: banda Empenha

produção musical: Bruno Villar


gravação:

guitarra solo: Fernando Pedroso (Baiano)

guitarra base: Moisés Nunes (Zartinho)

bateria: Leo Graever

baixo: Jorge Esteves (Jorge Maravilha)

vocais: Maneco Baccarelli, Bruno Villar e Tufa

voz: Tufa


gravado entre 2017 e 2018 nos estúdios Overloud, no bairro de Vila Isabel, e HR, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro.



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