Estava 20 minutos atrasado, o dedo em riste rumo ao
ponto eletrônico. O próximo paciente era jovem, recém chegado ao Rio e em grave
sofrimento psíquico. Apesar de a consulta não ter sido marcada, tive que
estendê-la por motivos óbvios, o que alcançou o horário do meu compromisso
seguinte: ação coletiva da minha equipe de saúde nas ruas de Vila Isabel
referente ao chamado “novembro azul”. Neste mês acontece uma campanha anual de
conscientização do cuidado do homem que se iniciou na Austrália em 2003 e tinha
como foco o câncer de próstata. Como hoje em dia nem o Ministério da Saúde, nem
o Instituto Nacional de Câncer, nem os comitês sobre prevenção à saúde dos EUA,
Canadá e Reino Unido recomendam o rastreamento de câncer de próstata em
assintomáticos sem história familiar, decidimos focar nossa singela atividade
nos fatores de risco que realmente importam para o homem: violência, tabagismo,
etilismo, obesidade e infecções sexualmente transmissíveis. Queríamos ir para
onde supostamente os homens estariam numa tarde de sexta-feira: o bar. Para
evitar um tom maçante e professoral de palestra e não atrapalhar o meio
ambiente, decidimos, em vez de panfletar, criar cartazes com os seguintes
hashtags:
# HomensMorrem+QueMulheres
#FiqueLongeDasArmas
#FaçaMaisAmor #EncapeOZé
#SaibaBeber #NãoVacile
#CigarroBroxa #éCaroeEnvelhece
#SeLigue
#FrituraeGorduraEntopeCoração
No intuito de garantir que não seríamos ignorados,
homens vestidos de mulher, e mulher de homem, pandeiro, marcação cênica e a
música Tem Pouca Diferença, de Luiz Gonzaga.
Logo após a consulta com o jovem, corremos ao banheiro,
o agente comunitário e eu, únicos homens do grupo, para colocarmos os vestidos
emprestados pela minha mulher. Enquanto, de cuecas, apanhávamos com uns buracos
existentes no colo do vestido que achávamos que era para os braços, mas era
para os seios, adivinhem quem entra no banheiro após ter pego a medicação na
farmácia? “Rapaz, veja só, vamos fazer uma campanha de saúde...” balbuciei
totalmente sem jeito, ainda com jaleco na voz, para o meu jovem paciente que
havia acabado de atender.
Quando já devidamente maquiados e ensaiando com o
resto do grupo, ele já aplaudia e cantava junto, ouviram até ele comentar: “e
ainda dizem que o doidinho sou eu”. A consulta havia sido ótima e ele ainda,
raptz!, comete este insight freudiano?! Depois dizem que médico de família não
deve participar das ações de promoção...
Desde o nosso primeiro bar, percebemos um achado
antropológico: a maior parte dos bebedores de Vila Isabel no fim de tarde de
sexta são do gênero feminino, bem-vindos à Vila do novo século. Utilizamos
inicialmente como plateia cobaia os clientes de um bar, bem roots, na esquina
da Visconde de Abaeté com a Boulevard 28 de setembro, os bebedores estranharam
de início, mas fomos laureados no final com algumas palmas esparsas. Adiante, encontramos
um compositor que fez questão de cantar o seu samba acompanhado do meu
pandeiro. Estava só, mas acompanhado da oitava cerveja de garrafa. Montamos
também o circo em outro roots bar Vila, na Duque de Caxias em frente à oficina
de carros. Um pedreiro trabalhando no primeiro andar de uma casa na Torres
Homem fez fiu-fiu para mim e Luiz, o agente comunitário, agradecemos como
madames. De uma coisa tínhamos certeza, usar saias numa tarde quente no final da
primavera em Vila Isabel é muito melhor que calças. Dá para abanar.
Como os bares ali do quadrilátero, o baixo Vila,
estavam ainda repletos de mesas vazias, tentamos entrar no Hortifrutti da 28.
Fomos gentilmente acolhidos pela supervisora, eu, elegantemente de batom, me
apresentando como médico da nova clínica da família, mostrava-lhes cada membro
da equipe e suas funções, mas infelizmente não conseguimos entrar, precisava da
liberação do gerente de marketing, anotei o telefone e convidei a supervisora
para conhecer a unidade de saúde da família. Precisávamos de um bar cheio,
repleto de homens sedentos por informação sobre saúde e receptivos a uma
performance político-musical.
Andamos toda a Jorge Hudge, sem nos animarmos muito.
No fundo, já sabíamos onde seria nosso gran finale, um bar na beira da São
Francisco Xavier, barulhento e quente, chamado Loreninha. Os estudantes da Uerj
praticamente colam o grau ali, além de ter gente de outras tribos devido ao
preço acessível da cerveja em temperaturas boreais. Bingo! Lotado e repleto de
homens sedentos.
Sempre quando começávamos a performance, as pessoas
olhavam meio de canto “não tenho dinheiro não, moço”. Quando, no final,
entregávamos os preservativos e o kit da saúde do homem com cartilhas e outros
penduricalhos, as pessoas sacavam que não éramos vendedores de rua, e aí alguns
batiam palmam, os garçons davam um legal e partíamos. O Loreninha estava lotado
e decidimos fazer nossa mini-apresentação sem comunicar ao dono. Quando me
posicionei, olhando para a rua, na soleira do piso de cima do bar e comecei “que
diferença da mulher o homem tem?”, vi no canto do olho a indecisão da dona em
me expulsar ou não, estava muito confuso para alguma decisão rápida: vestido de
mulher, todo pintado, com aparência de zona sul, sotaque de nordestino e não
era um calouro.
A apresentação era organizada previamente para combinarmos
o local de cada um no intuito de todos os clientes poderem nos ver,
permanecíamos alguns segundos em estátua, e eu começava a música, havia uma
deixa para que um erguesse pausadamente o cartaz, e assim era seguido, também
lentamente, por todos. Na segunda deixa, eles começavam a se mover como aquelas
mulheres no intervalo do boxe, passo decidido e sorriso largo. Novamente
paravam em outras posições e dois deles largavam os cartazes e distribuíam os
kits e preservativos, enquanto eu ia ficando rouco, competindo com o barulho
dos ônibus. Apesar do constrangimento da dona, tudo estava ocorrendo na
perfeição. Quando acabou, fiz um discurso breve sobre o cuidado dos homens, e
agora chegou a parte mais interessante da crônica, lá ia eu falando sobre
violência como causa de morte importante entre os homens, levantei a mão
imitando uma arma quando para abruptamente, juro, um carro da polícia militar em
frente ao bar. Um garoto de rua que estava ali vendo nossa apresentação da
calçada percebe, fica lívido, e parte em disparada sentido 28 de setembro
atropelando os jarros de planta. Dois policiais rapidamente saem do carro com a
arma em punho, todos do bar se curvam, preparando-se para o chão. Desistem de
atirar e entram no ônibus atrás de um suposto segundo garoto, todos do bar
assistindo à cena. Não o encontram, entram novamente na viatura e partem
zunindo de sirene ligada. Não me curvei, estava de camarote, virei estátua na
soleira do piso do bar. Quando a poeira desceu, terminei o meu discurso
interrompido com um “tão vendo? Eu não disse? Se cuidem!”, olhei para a dona
que a esta altura já era nossa camarada e nos trouxe uma cerveja boreal. “O
negócio aqui não tá brincadeira não, doutor”.
Voltamos para a clínica sem muita conversa, já havia
mais gente na rua sedenta à procura de bares, a gente meio já esquecidos de
nossos trajes, uma menina passou por nós “sen-sa-cio-nal!”. Rimos e nos percebemos:
a Clínica da Família Pedro Ernesto não mais possuía uma equipe com o nome Manoel
de Abreu, havíamos nos tornado a Equipe Azul Profeta de um Novembro Homem.
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