Palavra rebenta quando quer. Nasce tanto em lençol de guardanapo, quanto num berço de papel esquecido.
Palavra que transborda gofa letra, sai se derramando em frases.
Não quero buscar dados em bancos, nem ajustar o método à pergunta. Não vejo sentido em traçar argumentativos caminhos de ida rumo a mim mesmo. Não tenho pretensão em pôr gravatas em pingos do i.
Prefiro acreditar que papel em branco é terreiro sagrado guiado por todas as incertezas de um universo que acaba de ser parido.
Possuo um único objeto direto: amar. Sou um dogmático escancarado a seu dispor, nego-me veementemente a ser argüido nesse ponto. Questionar meu deus dissílabo seria o velamento. O último a-deus.
E nunca fui de apostar na pirraça da maldade.
Corram para amar, ou melhor, parem e amem. amém. E que assim seja.
terça-feira, 3 de maio de 2016
planejamento
penso
tenho tesão
ajo
tenho tesão
ajo
não penso
ajo sem tesão
não penso
penso sem tesão
não ajo
tenho tesão
ajo ajo ajo
não penso
não tenho tesão
penso penso penso
ajo
sexta-feira, 24 de julho de 2015
carta para Tomás 2
Filhote,
seu pólo cefálico coroou no pólo sul da mamãe e eu estava lá, em transe. Escrevo
esta carta para lhe narrar a experiência mais visceral que seu pai já viveu, sei
que é chato fazer pedidos, mas gostaria que você a relesse no seu aniversário
de 60 anos, em 2075. Nem sei por que lhe pedi isso, deu vontade.
Experiência
literalmente visceral vivido por sua mãe no percurso de um trabalho de parto no
qual a primeira contração já se distanciou de um intervalo de apenas 5 minutos
da segunda e assim por 11h.
Tomás, meu
filho, você é um lorde vitoriano: já com 37 semanas esperou seu pai defender o
doutorado no dia 5, concedeu à sua mãe um prazo de uma semana a partir de sua
licença e, fabulosamente, nasceu na data provável do parto (DPP), 22 de maio,
apenas 5% dos bebês no mundo são tão pontuais. E, para ninguém ficar nervoso,
esperou o momento do passe perfeito para dar um chute mais forte e romper a
bolsa amniótica: seu pai havia acabado de chegar da aula de natação, o momento
mais benzodiazepínico da semana, e nós havíamos acabado de saborear uma sopa de
ervilha numa noite climatizada de outono. Luxo só.
Tínhamos
uma certeza, estúpida como todas as certezas, de que obviamente você não viria
por aqueles dias, sua mãe estava ótima, tinha acabado de vir andando da casa
dos seus bisavós até nossa casa, uma distância de 5,6 km, e já havia combinado
uma prainha no outro dia.
Nesse
percurso, da Gávea até aqui na Rua Faro, ela fez questão de atravessar o Jardim
Botânico, o parque construído pelo proto ecologista D. João VI, a miragem verde
sobre a qual a Lispector imortalizou numa crônica, “o ato gratuito”, onde o Jobim praticava sua religião
de ouvir passarinhos, o pedaço de chão que esconde toda a força tupã-oxóssi ancestral
desta cidade. Muitos dizem que não, por ter sido um jardim construído pela
metrópole com espécies cientificamente escolhidas de todos os continentes. Porém,
ninguém me convence do contrário: há uma grandeza de mistério e saudade no
silêncio verdejante entre o bambuzal e as andirobas. No coração, uma tamanha
fertilidade povoa aquele verde-escuro. A sumaúma amazônica, uma das maiores do
mundo, modifica as pessoas que lhe rodeiam, enraíza-nos. O passeio
despretensioso de sua mãe foi fundamental para o peteleco de vida que faltava.
Interrompe
a sopa de ervilha: “vê se isso é xixi?” Até então nunca havia presenciado uma
ruptura espontânea de bolsa, apenas as violentas amniotomias praticadas nas
salas de gritos durante minhas práticas de obstetrícia na faculdade. Não sabia
que poderia pingar. Mas era. Sabíamos que em menos de um dia você chegaria, então brindamos um vinho branco, não havia tinto na adega.
No entanto,
achava que dali em diante viria tudo lentamente, contrações com intervalos
largos... Que nada, sua mãe nem acabou a taça do brinde. A minha agonia era a
de que mesmo com contrações lhe abraçando forte de 5 em 5 minutos, eu não
poderia realizar o toque, a bolsa tinha rompido, eu não tinha luva estéril.
Liguei para Heloísa, sua enfermeira obstetra, a quem um dia você vai pedir bênça,
e comecei a rememorar os passos do período expulsivo, para mim havia essa chance
concreta... Helô chegou umas duas horas depois e pegou seu pai no flagra, eu
juro que estava com medo de uma primípara dar a luz em 2h de trabalho de parto,
praticamente impossível medicamente falando. Revelo: quando sua mãe ia ao vaso,
eu tinha medo de ver seus cabelos. Helô não deu muita bola quando lhe disse que
a contração era “rochedo”. Bom, de dinâmica uterina, pelo menos, eu estava ok.
“7cm? é boa nisso, hein?” Eu sabia que sua mãe era boa parideira desde que a
conheci em Cuba, mas 7 cm em 2h eu não esperava. Senti-me melhor ainda em
obstetrícia, tanto Helô quanto eu sabíamos que em poucas horas poderia sim que
você chegasse ali na cama dos seus pais. Heloísa olhou para mim sem sua mãe
perceber e disse “simbora!” com uma piscadela. Virei Flash, a sua bolsa estava
pronta, mas e a da sua mãe? E a minha? Havíamos nos mudado há 2 meses. Na minha
mochila ensaquei tudo que achei muito importante, uma camisa, uma cueca, livros
de Neruda e Bandeira, um caderno de anotações e uma caneta. Havia planejado que
escreveria durante o seu parto uma poesia visceral, escrita em lágrimas de
tinta, uma coisa meio Rimbaud e Rilke. Reuni todas as bolsas, peguei chaves,
sua mãe, Heloísa, estava eu com o apartamento nos ombros. Entramos no carro,
sua mãe em contrações de 5 em 5. Sempre tive uma ideia persecutória de como
deve ser o grau de tanquilidade do motorista nessas ocasiões de parto e
emergência. Respirei fundo e dirigi joão gilberto, Helô me pedia para encostar
a cada contração, e eu ali, um motorista conduzindo Miss Daisy, atendia
elegantemente. O desespero começou quando tive a certeza de que o túnel
Rebouças estaria fechado, mas não estava, não era terça-feira. Pensei em
inúmeras coisas, facas, narcotráfico, batidas, errar caminho, pisei fundo.
Consegui sair da bad trip já na maternidade, elas subiram rapidamente para o
quarto e eu me vi novamente um sujeito calmo de fala baixa na recepção, até me
pedirem o RG e carteira do plano da sua mãe. Não tinha. Antes de refazer o
percurso todo de volta, meu smartphone me salvou, havia emails antigos com
número do cartão e jpg da identidade. Primeiro conselho, filho: não apague seus
emails.
Peguei o essencial para entrar no bloco cirúrgico: livros, o caderninho,
uma caneta e um celular descarregando, vesti-me de cirurgião e encontrei sua
mãe na banheira. O quarto era pequeno, sem televisão, uma maca obstétrica de
boa qualidade e uma honesta hidromassagem no banheiro. A penumbra era
fundamental e a equipe sabia disso, Gabriela, sua obstetra, deu play numa
música meio Tinariwen ibérica, outra a quem precisarás
pedir bênça. Ainda era 1 da madrugada e sua mãe já apertava minha mão na
banheira com intensidade maior do que aquelas brincadeiras de adolescentes que
um dia você vai conhecer. Entendi que a dor era “do fim”, segundo Luiz Gonzaga.
Por aí comecei uma atividade de massagem que só iria terminar às 8h06m, foi uma
prova prática de massoterapia, tenho a certeza que ainda receberei pelos
correios o título de especialista pela sociedade de massoterapeutas, fui aprovado
pela equipe e quase tive cãibras nas mãos.
Levanta, rebola, não quer mais banheira, maca, cadeirinha, tudo doía,
claro, seu polo cefálico invadia o polo sul da sua mamãe, respira, respira.
Gostava de uma posição sentada na maca com uma perna para fora e a outra
dobrada, talvez por isso e, segundo Helô, pelo encucamento no neocórtex, uma
parte do colo uterino fez beiço. O edema só foi reduzido após a redução manual feita pela
Fernanda Satty, sua obstetra auxiliar, outra bênça, após a anestesia. O momento da anestesia às
3h foi quando caiu a ficha que estávamos numa maternidade, a Medicina arrombou
a porta do quarto. Acende a luz, desliga o Tinariwen, “pode sentar, mãezinha, e
coloque a cabeça pra frente.” Reclama com a técnica que o campo está errado.
The dream is over.
Em vez de relaxar e dormir, o objetivo da anestesia para desfazer o
beiço, sua mãe começou a não sentir do quadril para baixo, pois é, drogas mesmo
nas posologias indicadas podem causar revertério. Talvez quando você for pai ou
avô a farmacoterapia genética personal esteja
em voga. À medida que as drogas iam sendo metabolizadas, sua mãe parecia que
estava num bar em Santa, papeou com a equipe, reviu meio mundo que estava de
plantão e que não via há tempo. Pensei em catar umas cervejas na cantina. Eram
3h30m. Mas as pernas voltaram ao normal e as contrações voltaram dicumforça. Fecha o bar, liga o
Tinariwen, baixa a luz. Tentávamos evitar a posição sentada na cama, levanta,
rebola, massagem, agacha. Não queria mais banheira. O chato é que o danado do
beiço não havia desinchado, veio nosso primeiro medo de mudar de sala e irmos
para o bloco do lado. A madrugada passa rápido ali em Laranjeiras, nos
intervalos das contrações ouvíamos gritos das colegas das salas contíguas, bem
tragicômico, às vezes entoavam uma melodia, recortada com um “ya hooo!”. O
ponteiro dos minutos zunia na parede.
Senti uma injustiça imensa de não compartilhar com sua mãe as dores,
poderia ser pelo menos 3 para 1, fiquei com medo de um vasovagal, ela apagar de
tanta dor. Inda bem que havia tomado a sopa de ervilha. Fernanda entrou e falou
mansamente que sempre foi boa em práticas manuais, em manobras e procedimentos,
que iria tentar reduzir o beiço com os dedos, o edema do colo do útero, que não
deixava seu pólo cefálico avançar. Ainda restava um filete bioquímico do
anestésico. Não doeu nada, uma manobra que costuma espremer gritos. Você
adorou.
Eram 4h30 e achei que você viria em no máximo 2h, comecei a calcular seu
mapa astral, dava ascendente em Touro, apegado demais, fiz bico, mas não poderia
reclamar mais de nada, você havia esperado eu acabar a aula de natação. Vagou
um banquinho da colega do lado, que teve bebê, um banquinho nada demais, apenas
com um design para período expulsivo, lavamos o sangue da colega e testamos com
sua mãe, ela aprovou, foi assim que você nasceu. No entanto, ainda teve muita
rebolada, sua mãe caprichava nisso, Helô usava a técnica do reboso,
chacoalhando um pano tensionado nos quadris, você curtia e dançava um tipo Fela
Kuti de cabeça pra baixo.
Já havia passado o ascendente em Touro, já eram umas 7h30, e eu havia
entrado num transe do qual não lembro nada semelhante no meu passado
psicotrópico, sua mãe estava esgotada, já pedia clemência sem nunca ter sido
batizada. Sentado por trás dela e a ela abraçado, comecei a revirar os olhos e
fazer força durante as contrações para que você fosse um pouco mais abraçado.
“Vamos fazer mais três”, ou “essa é a última” foi repetido várias vezes pela
equipe, como se estivéssemos regredidos, aceitávamos igual uma criança e suas
colheres de aviãozinho. Até que as obstetras deitam no chão com o foco do
celular aceso e dizem, “põe aqui o dedo, tá aqui”. Sua mãe não viu isso, mas eu
vi pelo ângulo de cima uma contração na qual um pedaço da sua tufa apareceu e
voltou. Eu chorava.
Gabriela depois confidenciou para sua mãe que nunca usou tanto sonar
para ouvir batimento cardiofetal no período expulsivo quanto no seu parto. Sua
mãe traçava a conduta, no intervalo da contração: “vamos avaliar mais uma vez?”
Foi tanto, que chegou o momento mais tenso de todo o parto. A sua tufa já
aparecendo e o sonar emitindo uma ruidosa bradicardia, aquelas bulhas
produziram muita noradrenalina em nossas adrenais e ressonaram como aquele tema
musical de Kill Bill. Gelamos. O maior pavor da sua mãe desde os primeiros anos
de residência em pediatria eram os bebês da neurologia pediátrica, muitos sofrem
sequelas graves e morrem cedo por causa de asfixia no canal de parto, porém
esses partos são geralmente horrorosos, cheios de intervenções desnecessárias e
precedidos de um pré-natal negligente.
Sua frequência cardíaca logo voltou ao normal e, acredito eu, foi o que
sua mãe precisava para, em poucas contrações adiante, fazer a maior e
derradeira força se agachando para adiante do banquinho e fazendo com que você
ouvisse melhor o som do Tinariwen ibérico.
Filhote, você era a tranquilidade personalizada, não deu um pio, sua mãe
ficou nervosa e perguntou se Lívia, sua pediatra, bênça, não queria levá-lo,
“claro que não”, você acabou de nascer e já dava lição: “não criem pânico!”. A
felicidade jorrava dos nossos olhos e enchia toda a Baía de Guanabara, despoluindo
Paquetá, passando pela Lagoa Rodrigo de Freitas e indo até o emissário do
Leblon e Cagarras. Sem um centavo do Eike. Passei 30 minutos contados de
relógio chorando, “vai ali e pega uma gaze com a técnica”, lá ia eu “boom
diiaa, poor favor, umaa gazeee”. Levei você no berçário, mostrei-o para todos
do vidro, tirei fotos, zap, tomei um expresso e uma água. Tudo chorando.
Fernanda e Gabriela me revelaram que fizeram questão de serem exatas nos
minutos, tinham reparado em mim calculando o seu mapa. 8h06m. Gêmeos com
ascendente em gêmeos. Foco, meu filho, foco.
Não sei se você notou, na sua primeira carta, chamo-lhe de Tomaz, com Z.
Essa letra foi uma questão de intriga durante a gestação. Sua mãe e amigas eram
do time do S, suas avós, inclusive minha sogra, meus amigos e eu, do Z. Há um cartório
no subsolo da maternidade em Laranjeiras, assim que o deixei no quarto com sua
mãe, tive essa incumbência. Antes eu brincava que quem iria registrar seria eu
mesmo, então a mim cabia a decisão. Depois de 11h de trabalho de parto, nem
pestanejei: “Tomás com S, né?” E fechei a porta.
ps1: recomendo-lhe usar Tomaz em qualquer coisa que possa fazer com esse
gêmeos com ascendente em gêmeos.
ps2: o que saiu do poema Rimbaud e Rilke foi esse brega-Bandeira aqui:
to mais feliz
com tomás aprendi
to mais eu
to mais nós
to mais aqui
papai, mamãe,
vovô e vovós
saúdam o pequeno
com tomás renascemos
Beijos do seu pai que o ama desbragadamente,
quinta-feira, 7 de maio de 2015
Carta para Tomaz
Filhote, de
agora até seu pólo cefálico coroar no pólo sul da mamãe, lhe mandarei cartas
adiantando nossas conversas neste mundo novo para nós dois.
Hoje sonhei
com seu avô, Bianor, vovô Bibi, que só conhecerás por fotos, poucos vídeos e
histórias de monte. Trajava linho branco, como era seu costume às sextas em
homenagem a Oxalá, mesmo sendo filho de Oxum. Estava num bar bonito, decorado
por madeira e luz baixa, cercado por gente risonha. Lembrou-me de que nos vimos
última vez também num sonho, era carnaval, eu de Chacrinha. Vagamente. Muito
raro sonhar com seu avô, raro lembrar sonhos, vivo sonhando de olho aberto.
Você iria
curtir bastante vovô Bibi. Na minha adolescência, era o pai predileto dentre os
pais da minha gang. Extremamente liberal no nível do comportamento, sair com “tio
Bianor” era sempre uma grande aventura na noite dos adultos. Como a contradição
mora no cromossomo humano, ele me permitia na infância pilotar lanchas, mas
nunca, e o “nunca”dele tinha força, atravessar a Av. Boa Viagem para tomar côco
verde, ou me aventurar pela praia junto com meu bando. Já crescido, torcia o
nariz quando eu peitava frequentar shows de rock, mas fui o primeiro da minha
geração a ganhar um carro. As mães dos meus amigos achavam um absurdo, e era,
eu tinha 14. “Tio Bianor é uma gréia”, só escutava.
Os sobrinhos
preferidos e eu recebíamos presentes de sonho: Castelo de Grayskull, caiaque personalizado
com a grafia do nome, roupa de neoprene e aparelho de mergulho completo, home
computer Hotbit MSX, passagens pra Disney, teclado Minami MP 2020, Fiat Uno vermelho
zero km e um Del Rey conversível de marcha automática, ar-condicionado, vidro
elétrico – quase uma mágica no final da década de 80, que ainda tinha uma
televisão de três polegadas com sinal ruim que ficava embutida no som do carro e
cuja a imagem era ampliada por uma lente. Para deixar a cena mais pitoresca para
época, havia um telefone sem fio com um sinal de curta distância, mas que dava
para usar no miolo de Boa Viagem em torno do prédio onde ele morava. Aos 8
anos, em 1987, ganhei um cartão de crédito, Dinners Club International, luxo só,
porém novamente a controvérsia, ou a sabedoria, eu só poderia utilizar com a
sua presença, nas compras que ele aprovasse. Paguei muita conta no Nino`s em
Copacabana durante minhas férias em jantares regados à cavaquinha e uísque.
Em todas as eleições antes de retirar meu título, ele me levava à cabine e me mandava
votar, “não quero me responsabilizar, o futuro é seu”, deu no que deu, acabei
votando no Collor. Claro que quando havia amigos seus como candidatos, e sempre
havia, ele mudava minha caneta, “é melhor aqui ó”. Todo ano novo, ele segurava
no gargalo uma Dom Perignon e servia um gole na boca para cada um dos seus,
sempre usava o mesmo short preto e uma camiseta amarelo-ouro. De novo Oxum.
Fazia anualmente uma festa ecumênica gigante na praia, em frente ao seu prédio à epoca, Edf. Nice, na qual juntava a sacristia da igrejinha de Boa Viagem com pai de santo e
baianas, que rodavam a saia na beira do mar enquanto incorporavam. O padre
começava a missa, havia imagens de cristo e Nossa Senhora da Conceição. Constituía
uma cena típica de um filme de Glauber. Isso tudo acontecia à noite, o que me
enchia de medo e curiosidade.
Medo e
curiosidade era o que eu sentia pelo vovô Bibi durante toda minha infância e
adolescência. Extravagante e supersticioso, liberal e repressor, irascível e
educado, perseverante e perdulário. Um anarquista com pitadas de punk no
comportamento e na moral, e um conservador na política. Excêntrico,
megalomaníaco que amava seu pai “desbragadamente”. E, aqui pra nós, nenhum
brinquedo me enchia mais de felicidade quando ele de soslaio me olhava e dizia:
“É craque.” Isso acontecia com alguma nota dez na escola, ou em coisas que eu
fazia e só ele enxergava tanta craquice. Depois que seu aneurisma na artéria comunicante
anterior se rompeu, numa hemorragia subaracnoideia severa, a única sequela que
sofreu foi uma mudança de comportamento... para melhor. Saiu do uísque para a
cerveja, ficou mais manso e mais sociável. Nesse momento, perdoei-lhe por
falhas e imperfeições, perdi o medo e joguei o karma no lixo mais próximo. Pena
que durou pouco e vovô Bibi partiu aos 59.
Há milhões
de outras histórias do seu avô que reunirei num romance sobre esta curiosíssima
família Oliveira, mas o que quero lhe falar mais objetivamente nesta primeira
carta é que te livrei de se chamar, em vez de Tomaz, Bianor de Oliveira III.
Não só vovô Bibi queria, como você era naturalmente, numa tradição de no mínimo
cem anos, a próxima vítima. Seu trisavô, Bianor de Oliveira teve o caçula,
Alfredo de Oliveira, que homenageou o pai no primeiro filho homem, vovô Bibi,
que teve o filho único, até onde eu saiba, Alfredo de Oliveira Neto, eu, que
quebrei esta corrente Bianor-Alfredo-Bianor-Alfredo.
Quase, meu
filho, por pouco.
Saiba que
estou adorando nossa comunicação mão e chutes, tenho a certeza de que já
reconheces quando é o papai, muitas mãos não recebem tantos chutes. Saiba que
você já orgulhou muito o papai, pois seu primeiro movimento foi durante o disco
Arena Canta Zumbi, você deve ter se empolgado com o batuque. Você está agora com 37 semanas, cuidado com a
cabeça ao se encaixar, tome conta do seu fígado recém-formado, e quando estiver
naqueles soluços chatos, tente dar uns apertinhos no cordão. A partir de agora
a mamãe me prometeu que vai dormir mais e falar menos ao telefone.
Tomaz,
muita calma nessa hora, porque segundo Heráclito e o Lao-Tsé, tudo flui.
Medite, meu filho.
Do papai
que te ama desde que você tem 6cm,
Alfredo
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
o grande canal
a divina marquesa da ponte me conquista
enche de esperança meu asfalto
muita gente atravessa
cabelo branco, boina, guarda chuva de amanhã
pouca gente fica sob um arco gótico e desmitifica todo renascimento veneziano
touca
um telefone rouco de um italiano seco no meio do tudo molhado
barroca é uma igreja longe manchada de fog
a divina marquesa da ponte me conquista
sorri gioconda e sua gargalhada faz marolas nas escadas do cais
molha meus pés descalços
cade minhas botas de borracha?
tem uma viela no meu olho de água estreita
reflete pedra de peso medieval
a quantos graus da proa a gondola girará?
espreita
o vaporetto torto numa ré sobre o porto
Mercato
Veneza comprou a seda da China
e a divina marquesa me ensina
que cada ponte me leva a Rialto
sexta-feira, 17 de outubro de 2014
bom dilma
Uma carta sempre pode falhar ao seu destino.
(Jaques Derrida)
Mas mesmo assim precisa ser escrita.
(eu mesmo)
Um dia passando de táxi na frente do Palácio da Alvorada vi no piso superior
direito uma sala de estar ampla e bonita com uma grande TV ligada e tive a
certeza de que a senhora estava lá. Já ia alta a madrugada e pude lhe ver sentada
numa poltrona violeta, vestida com um tailleur branco com detalhes pretos, pés
descalços com unhas bem feitas amparados no banquinho em frente, um tablet
desligado no colo e os olhos fixos na TV. A sala em meia luz. Fiz mais um
esforço para imaginar o que estaria na tela e, claramente, me veio o último
capítulo da segunda temporada de House of Cards, que seu colega Obama já tinha
visto antes de nós dois. Digo colega porque best friend está longe de ser após
Snowden e WikiLeaks.
A inescrupulosa escalada ao poder do Frank Underwood nos convida à
reflexão dos nossos próprios limites entre desejo, razão e ética, mas também
salpica na tela toda a sujeira por detrás do paletós, os financiadores de
campanha, os lobistas e todas as mais de 500 espécies de anelídeos sanguessugas
que se alimentam de milhões de eleitores-hemácias. Pois bem, nesse mesmo dia em
que lhe vi no Palácio, presidenta, havia votado “sim” no Plebiscito por uma
constituinte exclusiva, o embrião da reforma política. Sei que a senhora também
votou igual a mim e a 7.999.999 brasileiros.
Presidenta, eu lhe mando cartas desde 2011, sei que você as lê com
carinho, mesmo sem entender uns trechos, já foram mais de 15 correspondências.
Saiba que apesar do mensalão, de apertar a mão de Collor e Maluf, de denúncias diárias
do Globo, Folha, Estadão e Veja, votei na senhora no primeiro turno e assim o
farei no segundo, e sabe por quê? Porque em 44 anos de vida brasileira nunca
havia conversado com uma empregada doméstica na poltrona ao lado do avião,
nunca paguei tão caro a uma diarista e nunca, mais nunca mesmo, vi uma agente comunitária
de saúde estudando medicina em uma universidade pública, tendo ainda como colega
de turma a sua filha. Para a senhora ter ideia desse nunca, no meu tempo de faculdade
havia apenas 1 negro nas 12 turmas,do primeiro ao sexto ano. E era de filho de
diplomata.
E quer saber o que eu acho dos podres que eu mencionei lá em cima? Desde
o Partido Republicano Paulista, primeiro partido republicano fundado antes da proclamação,
sabe-se que para assumir o maior poder executivo do país precisa esquecer
qualquer rito religioso praticado na infância e fazer alianças com divinos, centro-divinos,
centrão, centro-demoníacos e demoníacos. Com os extremistas de ambos os lados,
seja de esquerda ou direita, seja de cima ou debaixo, não se mexe, nem se entra
em acordo, apesar de serem essenciais para se tensionar o tabuleiro do jogo
senão o dado pula.
Daí a existência do Collor, Sarney, Maluf e Renan, o que deixaria
novamente em coma um militante do PT que teve um acidente vascular hemorrágico
vendo o famoso debate Collor e Lula na Globo em 1989, e que acordou na primeira
década do século XXI e deu uma zapeada na TV. Claro, seria um choque comparável
a uma mulher que viu o beta HCG positivo na quinta semana e na sexta pariu. O
sujeito era de esquerda ou extrema esquerda e acordou como centro-esquerda ou centrão,
que é sinônimo de PMDB desde 1989, ou 1889, sei lá...
Sobre o mensalão, Presidenta, resumo-lhe este diálogo que escutei na
ante-sala do Congresso nos idos de 2004 ao lado de Eduardo Jorge, antes de ele
ser secretário de saúde dos demoníacos (DEM), quando lá estávamos balançando
faixas do movimento médico sindical contra o desmonte do CPMF:
- Não tem como a gente falar das mesadas! (cochichando) É assim desde
que o Congresso é Congresso.
- Última carta, ninguém tem outra ideia pra acabar com a reeleição.
Para mais informações sobre isso, especificamente sobre o envolvimento
do Joaquim Barbosa, aconselho-a reler minha última carta que lhe enviei em
fevereiro, especificamente o trecho sobre o fatídico dia em que o encontrei no
Metropolitan de Nova Iorque e lá, dentro do museu, o que a deusa Osíris me
revelou no Templo de Dendur. http://riocife.blogspot.com.br/2014/02/bom-dilma.html
Segundo o profeta satírico alemão, Brecht, que também era médico:
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.
Claro que Brecht está certo e, por isso, aqui no Rio votei no Tarcísio,
Chico e Freixo, claro que toda essa naturalidade do jogo político é um lixão
que produz várias estamiras esquizolúcidas, que nos enlouquece, nos confunde,
mas, em paralelo, vai-nos polindo a razão e trazendo a angústia da lucidez no
meio da rua de uma humanidade engarrafada. Entretanto, não se pode negar que o
eixo estruturante do desenvolvimento econômico adotado pelo PT nesses 12 anos
de inclusão social e de distribuição de renda, que culminou, segundo a ONU, com
a retirada do país do mapa da fome mundial, e com a agente comunitária de saúde
numa turma de medicina, não é absolutamente nada natural comparado com todo o
período republicano, monarquista e colonial brasileiro.
Em relação às denúncias do Globo, Folha, Estadão e Veja, presidenta, é
só ler um pouco a história da imprensa nesse país e entender que os Diários
Associados, o Correio da Manhã e o Diário de Notícias nas décadas de 40 e 50 e
o próprio Globo na década de 60 sempre foram contra qualquer governo que
ousasse uma mísera que seja distribuição de renda via políticas sociais, ou que
garantisse mais direitos trabalhistas, muito menos que propusesse debates mais
progressistas como reforma agrária, ou reforma política. Assim se deu com o
último governo de Getúlio, com o de JK e de Jango. É só lembrar que apenas um
jornal de alcance nacional foi contra o golpe militar, “A Última Hora”, de
Samuel Wainer, que eu sei que na época a senhora morria de vontade de assinar,
mas era muito centro-esquerda para uma VAR-Palmarense. Portanto, presidenta,
ter esse batalhão monopolista e quase monárquico produzindo diariamente
manchetes negativas quer no mínimo dizer que a senhora está no caminho certo.
Em contrapartida, os paradoxos não podem justificar os fins. Para além
de um partido que cresceu tanto, desconfigurou-se, e perdeu sua unidade dando
margem a aventureiros mercenários, eu não aguento mais essa insistência na
indústria automobilísitica e a redução eterna do IPI, mesmo sabendo que isso
sustentou a crise internacional.
Diversifique, pelo amor, o setor industrial, ou invente o impossível: “compre
seu carro e leve de graça uma rua, uma avenida ou um viaduto. Monte seu próprio
bairro.”
Da mesma forma, não mais suporto que as políticas de transferência de
renda sirvam majoritariamente para o jovem comprar moto e se acidentar, TV led
e se emburrecer, smartphone para entrar no Face, e diploma de facul privada que
se multiplica por geração espontânea. Produzimos a nova classe rolezinho-funk-ostentação,
que quando se descasca, falta o tutano. As 23 milhões de carteiras assinadas, a
amplidão do mercado interno, do consumo de massas, o aumento sustentado do
salário mínimo, que fez grande fatia da classe média lavar louça e passar um
pano no banheiro, precisa ser acompanhado de um investimento muito maior que o
do Templo de Salomão no salário e capacitação do professor público, do Infantil
à Pós-Graduação. O querer aprender com a vida nos tempos de zap zap e Face
precisa produzir um novo universo de criatividade e esforço didático para se
crescer, curtir, compartilhar, e crescer novamente.
Voltando ao meu solitário passeio noturno em torno do Palácio da
Alvorada, nós sabemos muito bem quem é o Underwood tupiniquim. Toda vez que
vejo o Never falando em acabar com a corrupção, inflação, e que vai fazer o
país crescer lembro do Frank sozinho no salão oval em pé por detrás da cadeira
presidencial se entupindo de orgulho e dando as duas rápidas batidas na mesa
com a mão direita. É bom colocar os pontos no U, como dizia meu bisavô alemão: compra
de votos para reeleição de FHC e o superfaturamento de trens e metrôs em São
Paulo são exemplos corrupção no PSDB, a inflação no governo FHC era maior que
todos os 12 anos do PT, e a estabilidade da moeda com o Plano Real em 1994 se
deu graças a um endividamento brutal da dívida interna, o que culminou com a
quebra do Brasil por três vezes, tendo-se como “solução” o maior OFF Brasil que
já se teve notícia com dezenas de privatizações a preço de paçoquita. O PSDB
materializou literalmente a canção “Aluga-se”, de 1980, do também profeta Raul
Seixas, que cantara a pedra: “É tudo free / Tem o Atlântico, tem vista pro mar
/ a Amazônia é o jardim do quintal”. O que
mais me entristece, presidenta, é a quantidade de gente estudada que embarca
nessa farsa com o único argumento de “mudar”, como se o Never representasse o
que há de mais progressista de projeto de sociedade para o futuro do país. Abre
a boca para falar de meritocracia, quando sua grande meritocracia foi ter
virado mórula, blástula, gástrula e por aí vai após o encontro das células
germinativas dos seus pais.
Para um eventual desastre, já organizei meus anti-depressivos e
benzodiazepínicos na farmacinha do banheiro, como um bom virginiano, e reservei
passagem de ida para Montevidéu, nossa Paris dos anos 20. A senhora poderia
finalmente realizar o desejo de, desculpa a intimidade, pegar o Mujica. Eu seria
o médico dessa nova família, e todo domingo dançaríamos um Candombe e enviaríamos
axés para Lula aguentar firme até 2018.
Mas, não! Definitivamente, never. Chacoalho a cuca com Marte passando em
trígono com meu Mercúrio em leão na casa 7, e aperto forte a guia de Iemanjá.
Rezo para que o Estado seja laico, graças aos homens.
Presidenta, segundo Bertoldo Brecha, “veeeenhaa!”. Contudo, venha
sabendo que, além do baixo crescimento, serão anos que o governo federal,
diante de um Congresso mais reacionário desde 64, se não tiver clareza de que
lado está sambando, vai descer até o chão.
É manter mais ainda a atitude multilateral na política externa, porque
se aliar à cadeia produtiva global é copiar o fracasso mexicano e voltar à
cartilha do FMI. É ter raça para baixar a Selic e investir na indústria
nacional com sustentabilidade energética, sem medo da inflação, e longe dessa aberração
de deixar o Banco Central “independente” nas mãos dos bancos privados. É fazer
mágica com os estados e municípios para elevar a qualidade da saúde e educação
sem privatizar. É desfivelar o cinto do Centrão e chegar mais perto da base e
dos movimentos sociais. É fazer com que eu não consiga mais pagar minha
diarista e passe o pano no chão do meu banheiro, é lotar um A330 de empregadas
domésticas e pedreiros rumo à Fernando de Noronha.
Mas qualquer cuidado é muito pouco, vi na TV agora mesmo a senhora
passando mal numa entrevista e dizendo que foi “pressão baixa”. Na verdade, foi
um piti, um faimizim, uma bilora. Receito-lhe sal grosso no bolso do taileur,
parar de assistir House of Cards, e ler todas as minhas cartas antigas para rir
um pouquinho. Muito importante: nunca fixar o olhar no riso sardônico do
adversário. Em vez de ele bater duas vezes a mão à mesa, por trás do riso ele
dá duas trincadas na mandíbula para consumar o ato final. Mentalize: Underwood
never.
Cordialmente,
Dr. Luiz
domingo, 24 de agosto de 2014
febre por dentro
para Júlia Rocha
quando Celsius beija o Farenheit do meu desejo
quando Celsius beija o Farenheit do meu desejo
me sinto inteiro, quente, maneiro
38 é quase minha idade e por maturidade
minha velhice vira bebê
me sinto prenho e mantenho uma chama
de delícia nas minhas entranhas
nada do que é pouco me sacia
e nunca saberia que
grau tem a ver com quentura
39 ou 40
pra mim é par de sapato
porque tudo o que me esquenta é doçura
e nem você de cima do seu salto
e do seu sentimento
perceberá de leve que agora
o nada que eu sinto por fora
vem da febre de tudo que eu sinto por dentro
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