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sábado, 9 de novembro de 2024

rolezinho em Serrambi: o conto do canto

Geralmente era noite alta e após vários pedidos, ele pegava o violão, apoiava o uísque num porta-copos de uma mesa grande de centro, conferia a afinação no mi maior e, nos primeiros acordes, minha atenção se voltava aos olhos da pequena plateia. Ia de criança a gente de 40 + e eu focava nas mulheres. Das meninas às mais velhas, era como se aqueles olhos retirassem a roupa após um dia de trabalho e elevassem as pernas, como se entrassem numa banheira quente, tomassem o primeiro gole da sexta à noite e esquecessem os aperreios na escola, as intrigas, as culpas e os boletos. Olhos de pôr-do-sol. Contemplei durante toda a meninice e adolescência aquele poder de alumbramento de Tio Duca, pai do meu melhor amigo de infância e ex-integrante de uma banda da jovem guarda recifense na década de 60, Os Primos.
Invariavelmente o repertório tinha um lugar cativo para You Can't Do That, dos Beatles, e ele seguia com uma introdução de um dó maior para um mi com sétima na sétima casa, um rock clássico mi - lá - si, com uma segunda parte inventiva em sol sustenido, inventiva para o Lennon daquela época. Uma letra boba de ciúmes de um garoto pela namorada, que não poderia dançar com outro, bem 50's e 60's. O grande trunfo do Tio Duca era o ritmo da mão direita e o baixo que fazia nos acordes e, obviamente, sua voz rouca afinada e seu porte galã 60s, de botas, tipo Springsteen.

Bruno, o seu filho, e eu, apesar de sermos de 78, na pré-adolescência colamos nos 60s e 70s. Até gostávamos de Nirvana, Pearl Jam, Guns e Metallica, porém o que emocionava mesmo era Chuck Berry, Little Richard, Elvis, Beatles, Stones e Doors. Decidimos montar uma banda focada nestes gringos e na jovem guarda, tendo o conjunto do pai como referência local, demos o criativo nome de The Primos, o "the" para sugerir que cantávamos também em inglês. como já escrevi em Medo Medieval, durou do final do fundamental até o fim do ensino médio e o nosso ápice foi tocar na formatura do terceiro ano do Colégio Santa Maria em Boa Viagem, Recife.
Insistimos tanto em pegar a batida de Tio Duca, que You Can't Do That entrou no nosso repertório, eu adorava tocar esta música como baixista.
São José da Coroa Grande é a última praia do litoral sul pernambucano, fronteira com Alagoas. A minha praia de veraneio desde a barriga da minha mãe até o final da adolescência. Meu primo-irmão Lula, que também tocava no The Primos, tinha casa lá, assim como o Tio Duca, que por acaso era primo de segundo grau de Lula. Enfim, em todo janeiro a primaiada parte de mãe e amigos invadiam aquele paraíso cheio de corais. Primeiros porres e beijos, todos nós aprendemos a dirigir carros em São José.
As praias mais famosas do litoral sul pernambucano hoje em dia são Porto de Galinhas e a Praia dos Carneiros, que pertence ao município de Tamandaré. Naquela época, Tamandaré era um point mais legal que Porto, e Carneiros era uma praia deserta que ninguém se arvorava a ir. No litoral sul,  além das menos conhecidas, como Gaibu e Calhetas, tem a praia de Serrambi, situada entre Maracaípe, a praia de surfe perto de Porto, e a pequena Toquinho, que eu achava quando pequeno que era uma homenagem ao parceiro do Vinícius.

Por um acaso algorítmico no Airbnb, fui parar em Serrambi em um verão longíquo daqueles, poucos anos atrás. Já com filhos pequenos, juntei-me com a família de um amigo e, para economizarmos, pegamos uma casa mais recuada da orla. Serrambi ficou conhecido nacionalmente devido ao caso horroroso das duas meninas, que até hoje, mesmo passados 20 anos, não foi encerrado, mas que ficou emblemático, pois tem a ver com a cultura da elite nordestina: farras adolescentes na casa de praia dos pais. Todo o litoral nordestino possui talvez uma desigualdade tão escancarada quanto Leblon e Rocinha, mansões e lanchas à beira-mar, e quem vive ali de fato se contenta com casebres recuados e jangadas de pau.
Chegamos e montamos um cooler com boas cervejas, carregamos o guarda-sol e cadeiras da casa para conferir o mar. Passei por uma ruela em que dava para ver, entre plantas ornamentais, uma grande casa em que adolescentes de bermudas de linho e camisas sociais dobradas antes dos cotovelos conversavam com garotas de cabelos bravamente escovados ao som de Sunday Bloody Sunday em ritmo de axé. Pura sublimação histórica, o domingo sangrento entre católicos e protestantes irlandeses lá na década de 70 encontrara sua redenção tropical entre mauricinhos e patricinhas pernambucanas no século XXI em Serrambi.  Na beira-mar, ao sentarmos, em vez do horizonte marítimo benzodiazepínico e inspiração pulmonar profunda, lanchas ancoradas, uma ao lado da outra e jet skis ziguezagueando, quase um tapume de uma imobiliária anunciando as maravilhas de se adquirir um terreno chamado Mar. Quando mergulhamos no "terreno", pedindo licença às lanchas, óleo diesel na maré.
Contentamo-nos com picolé e cerveja e nos percebemos uma classe média dando um rolezinho no Praia Shopping Serrambi.
De volta à nossa casinha, peguei o violão e comecei a brincar com a harmonia de You Can't Do That no jeito Tio Duca de tocar, "Vou dar um rolé..." Comecei algumas estrofes e terminei logo em seguida. A banda Empenha, que se chama hoje Praia Vermelha, adotou-a rapidamente, pois se encaixava muito na nossa base rock. A segunda parte da música só veio anos depois, para melhorar a dinâmica e diminuir a chatice. Mostrei para o Zartinho (Moisés Nunes) a ideia melódica e ele harmonizou. Achei conveniente temperar com romance uma música cômico-social, porém seguindo o tom, entre um classe média e uma patricinha.
"Ponho minha camisa UV só pra te ver passar" vem da moda no litoral nordestino, no máximo uns 15 anos para cá, de os homens, de classes diferentes, todos usarem este tipo de malha durante o dia. O clássico Dia Branco, de Geraldinho, entrou na letra pois, na época da composição, Zartinho e eu estávamos fissurados, ouvindo toda a discografia dele.
Os baculejos, ação ostensiva da polícia no corpo de outrem à procura de tóxicos, eram comuns em não brancos e não classe média nas festinhas nos centros de Tamandaré e São José. Gostei da cena de o rapaz enfrentar uma dura ao ultrapassar o limite de castas e dar um beijo numa boyzinha. Fiquei também feliz em rimar o verso de Geraldinho com as minhas praias queridas do litoral sul. À propósito, o primeiro show que fui pós pandemia foi Chico César e Geraldo Azevedo no Circo Voador, tenho fotos, ainda de máscara chorando todo o litoral. Showzaço, vi novamente no primeiro Rock the Mountain. Duas vozes e dois violões, Paraíba e Pernambuco, explodindo o coração de todos em orquestra.
Apesar de, para a maioria do Brasil, jangada remeter a embarcações simples dos pescadores de Caymmi, de vela e madeira, em Pernambuco jangada também é uma lanchinha pequena, cerca de 16 pés, que a classe média costuma comprar se juntando a outras famílias, para irem aos paradisíacos "pocinhos", pontos rasos de areia no meio dos corais com águas cristalinas, é necessário destreza para, com o motor de poupa quase todo levantado, livrar o casco dos arrecifes, a depender do nível da maré, ao tentar entrar no pocinho. Por isso, "eu sei pilotar jangada".




Para a gravação assumimos um clima sábado de praia. Inicialmente, a ideia era terminar a música numa rodinha de violão na própria Praia Vermelha, na Urca, com a barulheira natural do vento, mar, praieiros e banhistas, mas não conseguimos produzir. No entanto, levamos ao estúdio a nossa memória dos pregadores da beira-mar do nordeste e do Rio. Globo, mate, ostra e caldinho.
Bruno Villar novamente assina a produção e a ideia de trazer a diversão praiana foi dele. Acho que Zartinho teve a ideia do coro na introdução "Serrambi" e da brincadeira vocal, que ficou ótima em "que rolé? que rolé? que rolé?". Eu gosto do tecladinho em vibrato, bem Renato e seus Blue Caps o qual, depois da Jovem Guarda, foi amplamente usado no brega.
A música foi toda gravada em várias sessões durante o ano de 2023 no estúdio Praia Vermelha, o nosso reduto e bunker.
A base se deu com Leo Graever na batera, Brenda Costa no baixo, os baianos Daniel e Fernando nas guitarras e Zartinho nos teclados. Nos vocais, Thaís Façanha, Laís Pimenta. Brenda e eu.
Apesar da experiência de se sentir dando um rolezinho no litoral, estas praias continuam lindas de morrer, com a água do mar quentinha, o abraço no balanço de ser e falar dos nativos e aquela vontade infinita de virar árvore ao curtir uma brisa numa rede amarrada entre coqueiros. 
Uma briga recente no bairro da Gávea, aqui no Rio, entre moradores e construtoras que insistem em avançar tratores em direção à floresta, justificando empreendimentos eco light de morar bem, me remontam às inúmeras tentativas de abocanhar pedaços de areia, céu e mar pelos resorts e outros lobos vestidos de cordeiros no Nordeste. Rolezinho em Serrambi brinca com a classe média branca que, segundo Jessé de Souza, fica achatada, na parte de cima quer se colar à elite e por isso defende os privilégios dos ricos, apesar de saber que dificilmente encontrará um buraco para subir, enquanto que seus pés tentam se livrar das camadas mais baixas, onde há muito mais buracos pra cair. É a classe média que ao se sentar na areia, e não contemplar o horizonte, dá graças a Deus de estar próxima às lanchas.   




Ficha técnica

bateria: Leo Graever
baixo: Brenda Costa
guitarras: Daniel Baiano e Fernando Baiano
teclado: Moisés Nunes
vocais: Thaís Façanha, Laís Pimenta, Brenda Costa e Tufa
voz: Tufa
produção: Bruno Villar e Moisés Nunes



Rolezinho em Serrambi
(Tufa e Moisés Nunes)

E7

Vou dar um rolé
                                             A
Vou dar um rolé em Serrambi
                          E7
vou dar um um rolé, um rolezinho
                                        A
um rolezinho em Serrambi
               B                       A                           E7     B
tomo cerveja importada, mas nao tenho jet ski
             E7                                                             A
Da mansão na beira-mar escapava um som  qualquer (2x)
       B                                    A                         E7
era Sunday Bloody Sunday       suingado no axé 

A
Mas me sento nessa areia
               C#m
mesmo sendo um sem-terra na maré cheia
G                                                           Bm
ponho minha camisa UV só pra te ver passar
A
como no canção do Dia Branco
          C#m
eu enfrento um baculejo pra te dar um beijo
               G
Pro que der e vier
                                                  B
em Gaibú, Tamandaré e São José


                        E7
Vou dar um rolé
                                             A
Vou dar um rolé em Serrambi
                          E7
vou dar um um rolé, um rolezinho
                                        A
um rolezinho em Serrambi
          B                            A
já viajei pra Nova Iorque
                                          E7
mas lua de mel não foi Paris


solo


A
Mas me sento nessa areia
             C#m
mesmo sendo um sem-terra na maré cheia
G                                                              Bm
ponho minha camisa UV só pra te ver passar
A
como no canção do Dia Branco
C#m                                                                G
eu enfrento um baculejo pra te dar um beijo

Pro que der e vier
                                                   B
em Gaibu, Tamandaré e São José


                 E7
O guarda-sol é protetor
                                    A
tem caranguejo e picolé (2x)
         B                              A
no rasinho é tanta lancha
                             E7       B
óleo diesel na maré

                        E7
Vou dar um rolé
                                             A
Vou dar um rolé em Serrambi
                          E7
vou dar um um rolé, um rolezinho
                                        A
um rolezinho em Serrambi
           B                       A
Eu sei pilotar jangada
                                             E7
mas pra alugar só dá pro esqui