Assim como são os bares, são as pessoas. Em março completarei 4 anos de Vila Isabel, ou melhor, me graduarei em bar. Como em qualquer universidade, você sofre nos dois anos iniciais, principalmente no primeiro. Como calouro você geralmente busca um currículo canônico, está inseguro com a quantidade de informações e a sua futura aplicabilidade. O calouro, por exemplo, não frequenta de cara um bar que não esteja nos guias mais bacanas, não falo nem do elitista “veja rio”, mas sim do delicioso “confesso que bebi: memórias de um amnésio alcoólico”, do Jaguar, indicado insistentemente pelo meu amigo carioca Jorge Zepeda.
Revelo que antes de ser calouro na Vila já havia realizado um tour Rio essencialmente etílico. Meu Corcovado e Pão de Açúcar se resumiam a seguir com muita disciplina as recomendações desse guia sobre quais bebidas e petiscos pedir em cada bar listado. Foi esse livrinho do Jaguar o meu guia único, sobre o qual se desfilam as histórias lírico-fofoqueira-etílicas dos bares freqüentados por ele aqui no Rio, e bote bar nisso. Provei de pérolas como o Bar Luiz: o melhor chopp q já tomei em vida, com alguma lágrima nos olhos, descobri há 2 anos que mudaram de fornecedor, da Brahma para o "Xixicariol"; o Bracarense no Leblon, o melhor pré ou pós-praia, há um garçom especializado em tirar chopp, que fica plantado defronte à serpentina, além dos quitutes da Alaíde, que já proclamou sua independência e montou com o marido um bar próprio no mesmo Leblon, Chico e Alaíde; o Bar Urca, talvez o campeão no quesito paisagem no fim da tarde, situado próximo à morada de sua majestade Roberto Carlos; o Bar Brasil: aquele clima germânico... onde nessa mesma viagem dei de cara com Jaguar numa mesa discreta à esquerda de quem entra. Enlouqueci, achei que era conspiração, escrevi uma carta e o enviei pelo garçom. Na dita cuja eu me declarava para o velho, dizendo que queria ter um fígado igual ao dele, que queria fazer um novo Pasquim, que seria ele quando crescesse, bla´, blá, blá , aquelas chatices de carente bêbado. Saí rapidamente e na volta ele não estava mais lá. Até hoje me culpo do quão chato e inoportuno fui, o velho deve ter morrido de medo, seria eu um serial killer de cartunistas bêbados? Por fim (ufa!, ou ihc!) o Nova Capela, onde você se sente nos tempos de Noel: gravata borboleta e pratos com o mínimo de salada possível.
Claro que após esse curso livre “Rio Jaguar” no currículo, entrei com três pés atrás na graduação da boemia vilazebense, mesmo assim caí na armadilha do Petisco da Vila e do Bar do Costa. Os mais famosos, entretanto os mais artificiais. Sabe boemia artificial? Aquela em que na expulsadeira você logo reconhece quem é quem. Sem humor nem para expulsar os mais sedentos, como se o pano se fechasse e se retirassem as máscaras, quando as caretas se descortinam...
Assim como são as pessoas, são os bares. O “Petisco” é um aristocrata falido, conheço bem esse tipo, graças ao círculo de amizades de meu pai lá em Pernambuco, “comer m... e arrotar caviar”. Um climinha de que “a boemia é aqui”, nas paredes reverências aos bambas, principalmente ao Noel, matérias de jornais na parede, uma vez fiz questão de ler todas, numa delas se dizia que era só avisar ao garçom para sacar de um violão e começar um “sambinha na calçada”. Saquei o meu e fui logo proibido pelo gerente, mostrei-lhe a matéria e ele ficou com um risinho entre os lábios. Só fachada. O chopp mais caro do pedaço e uma sensação de que a qualquer momento podem lhe sangrar mais do seu salário.
“Costa” faz mais um estilo glutão, já foi mestre-sala de uma escola de samba antiga e tradicional, porém sucumbiu à concorrência das mais endinheiradas. Mesmo assim esse ex-mestre-sala fica contando vantagens e vaidades pra quem quiser, ou não, ouvir. Possui uma clientela fiel, muito familiar e é o bar responsável pelo bloco Eu sou eu, Jacaré é Bicho D’água, tendo como líder o simpaticíssimo e grande figura: o Rosa. Ele salva o “Costa”. No paralelo e nas perpendiculares muito bêbado chato e metido a valente.
Ao ingressar no 2º ano de graduação vilazebense descobri a pérola: fica ao lado do Bar do Costa, como calouro é cego..., naquela mesma calçada alta que mais parece um palco no quadrilátero do “baixo Vila”, está o Gente Nossa, já gostei do nome de cara pois é um trecho de uma música de Noel bem escrita. Os chefes do pedaço eram Antônio e Rosie, um casal que tratava todo mundo como convidado da casa. Não tem essa frescura de “normas técnicas gerenciais de relacionamento com o cliente”, que me irrita profundamente, os sorrisos já esculturados no rosto e uma clima de que “o cliente tem sempre razão”, até que não queira gastar mais um pouquinho... No Gente Nossa ainda rola o PF mais generoso do pedaço, com o toque maternal de Rosie, o preço idem. Lá tive deliciosos encontros casuais ou não com meu querido amigo e antigo vilazebense (nos trocou por Copacabana) o Tãozinho , Victor Neves, o Vitão. No “Antonio”, como a gente chama, não tem chopp, mais Heineken e Original sempre muito polares. O Antônio sempre um boa-praça, ele e sua mulher muito atenciosos in natura sem extrapolar a fronteira da chatice, enfim ingredientes essenciais para cativar a clientela. Lá tenho cartão fidelidade e sou cliente platinum.
Uma coisa chata é que Antônio e Rosie se separaram faz uns 6 meses, o que gerou comoção de todo mundo. Mas, como não se mete a colher, torcemos para que a felicidade lhes invada e lhes conserve para o todo sempre amém. Hoje a Rosie pilota sozinha, passou um tempo num semblante de amargura, mas já levantou a poeira e voltou a sorrir, principalmente quando chego lá sem cascos para renovar meu estoque caseiro de Original. Ainda tenho saudades do Antônio e a sua generosidade de presentear os clientes com seu cigarro, para não precisar interromper o papo e ir comprar novo maço na 28 de setembro. Para quem não é do Rio, 28 de setembro é o nome da nossa principal avenida e “boullevard” daqui de Vila Isabel. É que o Barão de Drummond, dono da Fazenda dos Macacos e amigo de Pedro II, idealizou um bairro parisiense com um clima avant-garde abolicionista. Da sua fazenda foi projetado esse bairro, cujo nome indica uma explícita homenagem à filha do “cumpadi Pedrão”, a princesa.
Mas estamos falando de bares, não de movimento abolicionista do Segundo Reinado, que os ingleses já sem paciência estimulavam no intuito do tão sonhado mercado escravo-consumidor of America. Por falar nos britânicos, na rua Pereira Nunes, existe o Snooker & Bar Classic Billiards, que ostenta uma fachada de capa de disco de rock 60’s. Lá se contam umas 5 mesas profissionais de sinuca, 2 de bilhar, e no segundo piso 2 de sinuca do Brasil, aquelas que funcionam a ficha de orelhão de antigamente.
O “Snooker”, que alguns vilazebenses chamam “isnuque” é um inglês aposentado que veio ao Brasil nos meados da década de 80 achando que poderia levar vantagem da recém-garantida Malvinas War, guerra descabida que elevou a popularidade de sua Thatcher e encheu de esperança a classe média inglesa na perspectiva de enriquecer abaixo da linha do Equador. Claro que o inglês preferiu o Rio a Buenos Aires, pois não queria ver seus tacos de sinuca virarem cassetetes nas mãos de los hermanos.
“Snooker” faz questão que o ar-condicionado permaneça na temperatura 16, e se apresenta com aquela lua vermelha na face após tomar uns brandies. Claro que torce pelo Manchester, mas é simpático ao Botafogo do Garwincha. Possui uma barriga com 40 cm de altura de fundo uterino, e não se faz de rogado quando o assunto é expulsar bêbado valente com taco na mão. Pessoalmente dá-lhe uns empurrões pra fora do seu “isnuque”.
Há alguns outros que deixarei para uma outra oportunidade por já ter passado do tempo regulamentar desta crônica, como o Abate (preço imbatível), o Gato de Botas (ótimo petisco, mas iluminado com luz branca) e o Amigos da Esquina (bar de maior fidelização de clientes que já vi, o arqui-inimigo do Petisco).
Termino a minha graduação na Vila já de olho na pós: é que há um bar com luz amarela baixa na esquina da Maxwell com a Gonzaga Bastos, onde se vê duas mesas de sinuca do Brasil, além de uma enorme estante de mercearia, que provavelmente deve conter salame e mortadela Bolonha. Chutaria que esse “amarelinho” seja um nordestino da cidade de Parnamirim, PE, extremamente desconfiado com freguês novo, porém quando se “aprochega”, revela-se um coração mole de queijo coalho frito...
Assim como são os bares, são as pessoas.