“Lá no alto, como gotas arteriais da selva mágica, vergam-se os copihues vermelhos … O copihue vermelho é a flor do sangue, o copihue branco é a flor da neve... Num tremor de folhas, a velocidade de uma raposa atravessa o silêncio, mas o silêncio é a lei destas folhagens...” (Neruda, Confesso que vivi, Ed. Difel, 17a- edição, p.5-6)
Nesta parte 2:
...Valparaíso, Puerto Varas, vulcões em chamas e uma experiência mapuche...
Valparaíso
Certamente deve ser mais convidativa próximo ao verão, nunca dentro dele. Deve ser bom se perder entre as escadas e becos dos morros que cortam a cidade portuária. O Pacífico, pelo menos por lá, faz jus ao nome, dando ao oceano um ar de baía.
Vimos outra manifestação universitária nas ruas, dessa vez no início, vindo feito cobra larga tomar a principal avenida. Para se ter ideia do tamanho não me lembro de ver a cauda, acabei pegando um acsensor, elevadores antigos, tipo mini-bondinhos de trilho que lhe leva aos mirantes da cidade.
Vale a pena a ida a Santiago no outono e no inverno apenas para conferir a La Sebastiana, casa que Neruda fazia questão de passar os reveillons com os amigos em festas que ainda dá para sentir o clima em alguns andares. Há quatro. No último, onde escrevia acompanhado de seu copos, nos dá a sensação de estar navegando na serenidade de um céu de cruzeiro. Cruzeiro com uísque.
Fomos a um restaurante-café chamado Café Turri, que se vai pelo ascensor Concepción. Boa comida, garçons muito canastrões em mostrar simpatia, não me esquecerei da voz insuportável de uma garçonete. Um ambiente pouco descontraído, mas de uma bela vista, que do terraço perto do verão deve ser agradável.
E só.
Puerto Varas e uma experiência mapuche
Fomos de Pullman Bus em assentos semi-leito para Puerto Varas, são 12h. Se não tiver problemas em dormir em ônibus, você economizará uns 25 vinhos Marques de la Casa Concha. Porque além da diferença de avião ser o triplo, ainda se ganha uma diária de hotel.
Certamente, os bosques aos quais se referem Neruda estão plantados no Distrito dos Lagos. Caso só tenha 3 ou 4 dias na manga, vá direto para a região dos Lagos, lá se fica mais perto do coração do gigante.
Vale muito ficar num hotel na beira do grande lago Llanquihue. A janela do quarto do hotel Bellavista foi uma das telas naturais mais bonitas da minha vida. No horizonte do lago arrodeado por bosques paira, quase levitando, o Ozorno vestido de neve, além de outras montanhas que lhe acompanham.
Deve-se alugar um carro e ir à sua busca, acho que o passeio de carro mais interessante que se possa ser feito em cerca de 1h, talvez em todo o planeta. Você sai de um hotel com ruas, esquinas e cafés e em 1h se está de frente a um vulcão, num teleférico, em meio da neve com a temperatura próxima a zero. A 1200 m do chão.
Outro passeio menos diferente, mas não menos imperdível são as pequenas trilhas do Parque Nacional Vicente Pérez Rosales, próximo ao Lago Todos Los Santos. Ali deve existir alguma força estranha poderosa que enche de água nossos olhos, assim como debaixo da Cachoeira da Fumaça na Chapada Diamantina baiana. É como se você estivesse recebendo calorosos abraços de mãe.
Nos arriscamos de carro para Chiloé, a maior ilha chilena e fomos levados por uma índia mapuche a uma aventura pela costa. O mais interessante que poderíamos fazer, segundo ela, seria um passeio até a a Playa de Rosaura, entre Playa Brava e Guabún. Depois pegar uma “ruta” mais selvagem pela costa, parar numa cidade chamada Pumillahue, comer uns Locos, e seguir até Dalcahue, que fica a umas 3 horas pela rodovia principal da ilha. Era sábado e chovia fino. Chegamos à Playa de Rosaura felizes por uma estrada de pedra e barro, uma paisagem bucólica de casas afastadas e pastagens de gado, vacas malhadas na estrada, ovelhas, velhas pontes de madeira.
A Playa de Rosaura é realmente bonita com chão de pedras escuras, daquelas que enfeitam colares e que também são usadas para preencher vasos de vidro em salas chiques. Diferente de Valparaíso, mar menos pacífico. Montanhas de pedra, areia grossa, só a gente na pequena praia, frio com chuva.
Achando tudo muito divertido, após tragos de vinho, nos direcionamos na aventura mapuche de Pumillahue. Após cerca de uma hora de estrada de barro, inúmeras paradas para peguntar aos moradores locais, que falam um espanhol meio dialeto, não chegamos a nenhuma Pumillahue, creio que nunca chegaremos. Passamos pelas Islotes de Puñihuil, onde os pinguins vão de vez em quando, cruzamos vilarejos e vilarejos e chegamos num lugar meio inabitado, um bar na areia de uma praia que não sei o nome embaixo de uma costa, que tive a certeza que o carro não voltaria.
A dona do bar, que também deveria ser a sua casa, abraçada à sua pequena filha, nos abriu a porta muito desconfiada. Por que, em meio a um sábado chuvoso, alguém quisesse se aventurar num bar de veraneio? Comemos os Locos, que são umas empanadas com crustáceo e, para deixar o clima ainda mais incoerente, tomamos uma cerveja gelada. Naturalmente não aceitava cartão, e nosso pesos estavam peso-pena em nossos bolsos.
- Como saímos daqui?
Ela olhou para a areia do mar: - por ali, vai à direita e sobe um barranco.
Quando falamos da nossa aventura até Dalcahue, acho que ela pensou estar vendo ETs.
Se um dia você acordar num desejo de grávida de comer uns Locos em Pumillahue, ligue pra gente.
Ainda em Puerto Varas ficamos sabendo da erupção, devido a tremores de terra, do Cordón del Caulle, uma cordilheira de vulcões ao lado do vulcão Puyehue a uns 100 km de onde estávamos. No outro dia íamos tentar um passeio de barco pelo Lago Todos Los Santos, desistimos e fomos conhecer a charmosa Frutillar.
Cidade de colonização alemã própria para enamorados. Uma pista, agora de asfalto, com paisagens bucolíssimas do Llanquihue, cujas margens habitam belas casas de campo. Sabendo vagamente da gravidade do que acontecia, fizemos ótima escolha em não ir ao passeio de barco, os brasileiros que haviam ido tiveram que retornar.
Antes de sairmos de Puerto Varas, ao lado esquerdo do Ozorno, 10 km de fumaça da erupção se lançava ao ar como uma rosa de Hiroshima. Entardecia e todos os nativos estavam misturados aos turistas para tirar fotos na beira do lago. O gigante dormia há mais de 50 anos.
Mais vulcões
No último dia do Chile, sentimos o poder do gigante na pele e nas olheiras. Chegamos ao aeroporto às 4h10m e já desconfiei da demora na fila do check-in. Resultado: céu da Argentina cerrado, todos os vôos da manhã cancelados.
Por sorte do destino, consegui ser o segundo da fila, já na sala de embarque a ser transferido para um vôo para São Paulo pela LAN às 13h45m, que não sabia se iria decolar. Decolou, decolamos, mas ao tentar aterrisagem em São Paulo 5h depois, o comandante num espanhol difícil de entender avisa à tripulação que Guarulhos também está fechado. Um ciclone.
Ficamos girando em torno de Campinas e Ribeirão Preto e depois tivemos que descer no Galeão.
Sorte nossa, a não ser pelas nossas malas que só poderiam ser resgatadas no outro dia. Mas senti que trouxe um quê da terra sensível chilena nos meus pés, quando o táxi que chamamos no Galeão, quase arrancou a porta de outro ao estacionar no desembarque.
No outro dia, chacoalhei meus sapatos e segui em terra firme pelas calçadas de Vila Isabel.
Por aqui me despeço do Chile e de vocês. Quem resistiu até aqui nessa minha longa crônica de viagem, está convidado a vir a minha casa para provar uns vinhos. E mais ainda, um pisco sur que trouxe enrolado em minhas cuecas.
Importante: se comprar vinhos e piscos: dentro da mala, senão como bagagem de mão podem ser confiscados pela muy amiga aduana chilena.