A vida, algumas vezes, nos traz de bandeja, num par de dias, aprendizados sob situações tão opostas que no fim da aula você fica matutando os porquês. Sexta-feira, numa Ipanema radiante, fiz figuração para uma cena de pôr-do-sol; sábado pela manhã, aterrisei num pós-guerra de uma Teresópolis virada pelo avesso.
Foram 40 minutos da estação São Francisco Xavier à praça General Gozório em Ipanema. No carrasco verão carioca, não se deve titubear entre ônibus e metrô. Uma questão de saúde pública: o próprio metrô precisa estar em clima de inverno e banhado em protetor solar para se prevenir desidratação, câncer de pele e excesso de comentários sobre o calor entre os passageiros.
Atravessando a praça, onde existe um leão de bronze olhando para o ceú, rumo ao calçadão da Vieira Souto, me veio novamente àquela sensação maravilhosa de me sentir turista na cidade onde vivo. Foi como se, ao atravessar os portões, AÇÃO!, figurantes tomam o set de assalto que se estende do posto 8 até o Arpoador: o cara do quiosque entrega um côco sorrindo, bicicletistas de viseira jogam água na testa e depois chacoalham a cabeça sem deixar cair os óculos, um gringo já de pele vermelha gesticula depressa e fala alto numa língua que apostaria ser alemã ou holandesa, já o nativo de Ipanema tenta se equilibrar sobre uma corda bamba presa entre dois coqueiros, os bebês recebem o carinho da troca de fraldas nos estandes de madeira, e lá vem a linda garota que passa. Tudo isso com pedidos eufóricos do diretor em garantir um sentimento de entusiasmo, otimismo e natural alegria diante do cenário perfeito que pipocava no fundo de cena. A montanha, o céu e o mar de Billy Blanco e Jobim contracenavam numa atuação impecável com o ator principal, Ele, o mega popstar Astro-Rei que se ia escondendo por detrás dos Dois Irmãos sob os aplausos dos banhistas.
Chego ao Arpoador, o show já havia começado, gente vindo do banho de mar, crianças na corcunda dos papais, e mais pessoas iam se acumulando para curtir as canções do Mombojó no palco da Oi FM. Não tenho CDs da banda e não me lembro de ter escutado uma música toda sequer. Confesso que o pouco que havia conhecido não tinha me agradado e realmente não entendia a causa de tanto auê em volta deles, porém mudei minha opinião ao ponto de chamá-los de Bombojós. O que vi foi uma banda amadurecida, numa integração linda de se ver; honestidade artística, sem firulas, verdade de palco, arranjos bem bolados, escapando felicidade por entre as músicas. Algumas, inclusive, o Felipe S não conseguia cantar, pois a platéia dominava as letras em altos pulmões. Na saída, a caminho do mar, sensação confortante em ver famílias resistentes ainda curtindo uma prainha à noite sob os holofotes da orla. Feliz por papai do céu ter diminuído uns 3 graus da calefação, e por estar me encaminhando pros braços do meu bem, para contar-lhe minhas aventuras e de como são Bombojós.
Mas aventura mesmo estava por vir a partir do instante em que eu, mais 2 médicos e uma psicóloga entramos no ônibus das 8h30m com destino a Teresópolis. Havíamos nos alistados como voluntários na área da saúde. Lá chegando, percebi que o Centro não havia sofrido fisicamente com o desastre, mas se percebia no semblante das pessoas uma insônia devido a pesadelos. Antes, no caminho, da janela do ônibus que subia a Serra dos Órgãos, vendo aquele vale imenso de se perder a vista, imaginei o ano de 5011, todo aquele acidente geográfico coberto pelo oceano atlântico e um mergulhador boiando exatamente em cima do Dedo de Deus, o homem borbulhava oxigênio e gritava sob a acusação divina: - Mas não fui eu!
Se não foi ele, quem foi que matou mais de 800 na pior catástrofe natural do país? Não sei se quero saber agora, pois D. Socorro*, de 85 anos está sofrendo de uma falta de ar que a impossibilita de acabar a quentinha fornecida pelo abrigo de uma escola no distrito de Vieira, para onde nós fomos acionados em missão pela prefeitura. Moram 65 pessoas, muitos estão com a casa condenada, outros viram metade do lar escorrendo rio abaixo e alguns perderam tudo e todos.
Vieira parece um canteiro de obras, as pessoas não cansam de trabalhar, cavando terra, retirando entulho e construindo parede, você chega a pensar que a cidade está sendo construída, até quando você observa que no meio dos entulhos há sapatos e pedaços de roupa, e acolá casas iguais aos de documentários de cidades bombardeadas pela guerra.
D. Socorro, assim como seu filho José, são analfabetos. Moravam sozinhos numa casinha na beira do rio. José ganhava um trocado capinando roça alheia. Pela gravidade do estado físico de sua mãe, decidimos levá-la para o posto de saúde mais próximo, que era longe, pois o posto de Vieira também fora remoído pelas águas. Para encurtar a história, o que me surpreendeu foi a decisão do filho em não progredir com a mãe no itinerário de uma emergência mais equipada, pelo fato de haver uma sórdida ameaça a lhes rondar: a casa deles tinha sido uma das poucas que, apesar de semi-destruída, estava de pé, e José se sentia muito temeroso em relação á fragilidade da corrente em sua porta.
Saqueadores estavam à solta, e o fogão, televisão, geladeira, cama, cadeira e mesa resumiam o muito do pouco que eles tinham. Partir para uma emergência, mesmo que fosse ao centro de Teresópolis, aliada à chance de D. Socorro necessitar de observação por toda a noite, fizeram José assinar o termo de responsabilidade e retornar com sua mãe doente para uma Vieira ainda mais adoecida.
Além da poeira formando um manto de neblina marrom, através da janela do carro, presenciei cenas semelhantes: amigos e familiares acolhendo o sofrimento de homens e mulheres totalmente perdidos em interrogações sem respostas. Segundo uma moradora antiga, para 2h de chuva causar um prejuízo infinito só pode ter sido um “tsunami pluvial”.
D. Maria quando se sentou na cama de madrugada, sentiu uma pequena correnteza lavando seus pés. Acordou prontamente a filha, que disse estar seminua, foi apanhar uma colcha no guarda-roupa para cobri-la, ouvi um estrondo e já estava automaticamente, esperneando sob a lama, sendo dragada pelo rio e seus destroços. Foi lançada contra uma pedra, sobre a qual escalou se ralando por todo o corpo. Quando conseguiu ficar de pé, foi só se acocorar e pegar pelos braços a sua filha que vinha na mesma correnteza. Estavam vivas e passaram um bom tempo abraçadas e rezando alto em cima da pedra que havia se transformado na Ilha dos Milagres.
Apesar de toda essa catástrofe, cabe bem ressaltar que os sobreviventes de Teresópolis estão na raça e na coragem que lhes restam empenhados na reconstrução do território e voltados à solidariedade aos mais vitimados. Em cada abrigo, lideranças resgatam forças do desconhecido para cadastrar famílias, coordenar as doações de roupas e medicamentos, administrar a cozinha e servir de interlocutoras entre o abrigo e os órgãos oficiais. Em meio ao caos, é triste ouvir de uma das lideranças, por exemplo, que a secretaria de educação vem ameaçando tomar a escola de volta. A luta não deve terminar tão cedo, e à medida que as redes de rádio e tv se distanciam, a necessidade de ajuda vem crescendo, como já era de se esperar.
Voltamos ao Rio exaustos e calados. Foi quando percebi que na véspera eu estava rindo à beira do mar, e um trecho da canção do Bombojó não me largava: “esse é o Reino da Alegria...”. Pois que cresça por sobre aquelas serras, ainda que bem verdinho, um longo manto de esperança, que irá cobrir e sarar as feridas dessa gente que, por hora habitante do Reino da Tristeza, possui a coragem quixotesca de enfrentar batalhões se preciso for para garantir uma nova era e retornar ao reino de origem, o Reino da Beleza.
* nomes fictícios para pessoais reais
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