No começo, máquinas leais aos homens reproduzem, em movimentos ágeis e robotizados, o rastro da revolução inglesa. Girafas mecânicas oferecem seios de aço às plataformas das embarcações de ferro e sol
Uma tribo movida a petróleo adormece à direita de quem passa. Hálito de sono quente, surpreendente paciência automotiva no labirinto de garagens
Girafas mecânicas se somam a trombas e chifres cenozóicos gerenciados por genomas de computadores primitivos
O clima é de recomeço: sopro de pássaro faminto de vôo içando vela de caravela, um alvorecer de águas arejando dia nascido, montanhas se banham ao sol, raios de luz escorrendo pelas encostas... Quantos dedos de Deus são necessários para desenhar o novo mundo?
À medida que se passa, de ambos os lados as máquinas vão perdendo suas dimensões de homem diante do pequeno infinito de silêncio. Gaivotas me passeiam, me oferecem uma visita ao encantado. Um tailandês sob o sol tempera a sal e saudade um linguado poliglota de águas profundas, uma mulata alemã invoca preces batistas da janela de uma aeronave que num rabo de rasante risca a parábola da manhã
De repente, chove no canteiro de obras do recomeço do mundo e a constelação de barcos vai se caramelando no azul-cinzento
Quantos sonhos cochila o marujo no convés daquela corveta distante? Quantas lágrimas de brandy restam no seu cantil?
Gaivotas me passeiam, me largam na corcunda da serpente de cimento e aço. De cima da corcunda não preciso de asas. A corcunda me gravita, avisto a passagem para o desconhecido. Por um instante me agasalho de esperança, abro um sorriso para a estrada
Reaparecem girafas mecânicas, trombas, chifres, fumaça de petróleo, giga-watts do incessante futuro que me ultrapassa, aposto corrida, sou ingurgitado da garganta da serpente, cimento e aço do meu carro na janela do pedágio: são 4 reais, reais demais para o canteiro de obras do recomeço do mundo.
(para “o tudo” que é visto de cima da ponte Rio-Niterói...)
Nossa! Que epifania! Parece que você foi engolido pela "Máquina do Mundo"! Gostei muito.
ResponderExcluirhttp://www.releituras.com/drummond_amaquina.asp
Valeu, Alice... realmente é um passeio entre as divindades de cima daquela ponte... Folega, sabe?
ResponderExcluirCaro caro carissimo!!! Lambra magníficas maquinas do mundo; mundo vasto de ombros largos sem rima
ResponderExcluirA crônica urbana é a literatura do anônimo. O reflexo de um povo para a história. Ela emerge do cotidiano do demos. É o resultado final da polis. E para isso precisa-se flanar. Não apenas caminhar disperso pela cidade, mas sim atento sem a pretensão de buscar a solução radical de suas deficiências. Mas de relatá-las às vezes com ironia, às vezes com seriedade, mas nunca abandonar a sua visão poética.
ResponderExcluirRelatos como esses aqui em teu blog é que são essenciais para refletirmos a vida, que é tudo ao nosso redor, para compreendermos a nossa existência, que é tudo que está além do nosso microcosmo.
Muito obrigado, Júlio, pelo cuidado, honestidade e delicadeza na crítica. Isso me anima a voltar ao meu ritmo de produção... ao canteiro de obras!
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