Meninos e meninas, eu vi! A cidade do Rio, de uma vez por todas, fez jus ao nome. Não foi um Rio de águas claras e lisas, margens robustas de verde mata, mas sim uma fúria de águas crestando ondas e arrancando raízes, como se o Monstro das Águas Doces houvesse sido desperto depois de uma eternidade de sono encantado e estivesse com uma saudade incabível dentro dele para se reencontrar com o mar.
O Rio, que os portugueses se enganaram ter encontrado num janeiro de um ano distante, estava ali diante dos meus olhos. Os colonizadores há quase 500 anos estavam geograficamente corretos! Um viva à escola naval do Infante Henrique e toda a sua ciência! Realmente, tudo em volta dessa Guanabara é pluvial...
Quando atendi meu último paciente num posto de saúde da Grota em Niterói, o relógio marcava 16h42m do dia 5 de abril de 2010 e juntos ouvimos o início de uma trombada d’água. Moradores que somos desse Grande Rio (falo aqui sem grandes propósitos apenas da grande Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a segunda mais populosa do país), nos comunicamos pelo olhar e apertamo-nos as mãos. Daí para pegar meu segundo ônibus rumo a Vila Isabel, onde fica a minha morada, custaram 25min, tudo conforme o previsto. Ela, A Chuva, já tinha fincado os pés no chão, porém, ainda se poderia perceber pingos de misericórdia com quem havia acabado de sair do trabalho no fim do expediente de uma segunda-feira, pensando bem, nada de tão misericordioso assim da parte dEla.
A partir de então, parece ter havido o desencanto do sono do Monstro conforme já mencionei linhas atrás, não sei se encantado remotamente por um feitiço católico dos ibéricos, quem sabe um pacto com demônios e santos para aquietá-lo e conquistar a região, ou se tal desencanto veio da ira de deuses indígenas revoltados com o holocausto dos índios do sul, só sei que o monstro acordou faminto, enraivecidíssimo e com uma sede inimaginável. Na minha versão, uns dos seus “braços”, o Rio Maracanã e o Rio Joana se libertaram dos grilhões e das mordaças, que desde o século XIX os encurralavam: foram canalizados, assoreados, tiveram suas margens chicoteadas no intuito de estreitá-las e serem reduzidas à sua mais vil insignificância, afinal de contas carros precisam de espaço e a civilização precisa ensinar à natureza onde está o seu devido lugar, a ordem dos homens que calculam a vida e a morte deve imperar etc. etc. e tal, mas isso não é novidade.
Em 1966, 1988 e em 1996, ele, o Monstro das Águas Doces, já havia sido despertado do encanto, mas apenas o suficiente para bocejar, virar de lado (o que já um estrago) e voltar para o coma induzido pelo feitiço, ou na minha versão, para o calabouço subterrâneo construído por nossos ancestrais, também reles mortais como nós.
A grande novidade é que o Monstro das Águas Doces havia acordado e tomado café e eu estava há 3h dentro do Garcia Vila Isabel, o ônibus que supostamente me levava à minha morada e que se encontrava parado em ponto morto há 1h30m. Já havia cochilado ouvindo violinos da MEC FM 98,9, acordado com bandolins de choro de um competente grupo chamado Regional Carioca, lido metade de uma Carta Capital de três semanas atrás e percebido que a ineficiência do meu celular naquele momento não fazia jus à conta que faço questão de pagar em dia. Quando... da janela do meu assento percebo um burburinho e, logo depois, sirenes de uma ambulância a ressonarem, uma pessoa inconsciente e com a calça jeans encharcada é transportada na maca pelos bombeiros e seguida por curiosos. Mais adiante, um cinegrafista com uma câmera profissional, daquelas grandes, com todas aquelas luzes. Pois bem, essa grandeza de câmera e luzes me fez entender que alguma “coisa” poderia estar se aproximando.
Não fui o último a descer do ônibus, mas a posteriori cheguei a refletir após essa experiência que em muitas situações acabo tendo uma posição inicialmente passiva, de ficar no meu canto diante de algum acontecimento inusitado. Resultado: quando me decidi descer e caminhar um pouco na chuva rumo ao próximo Select, pois o tal ônibus havia parado ao lado de um posto BR junto à Praça da Bandeira, dei de cara com duas imensas filas de pessoas molhadas, uma para o Bob’s, a outra para quem quisesse se divertir com salgadinhos, refrigerantes, biscoitos da própria loja de conveniência. Colegiais em bancos improvisados fazendo a tarefa de casa com cadernos no colo, taxistas, frentistas e mulheres com roupas, cabelos e bolsas de executivas no mesmo grupinho, rindo e jogando conversa fora... bem inusitado, não? Lembrei muito do clima de excursão da 7ª- série do colégio, aquele ambiente de espera do nosso ônibus de turismo, enquanto o grupo ia se socializando com hambúrgueres e fritas da recém inaugurada Mc Donald’s de Recife, cidade de onde vim.
Dando a volta no posto de gasolina, a tensão dominava o ambiente, a marginal da Radial Oeste que dá para a Praça da Bandeira rumo à Tijuca começara a se encher lentamente de água barrenta; carros e ônibus parados há horas durante aquele tempo que permaneci no Garcia Vila Isabel haviam iniciado o processo de tortura: o afogamento insidioso, centímetro a centímetro, sem poder sair do lugar. Roda, jante da roda, cano de escape, portas, janelas... Na verdade, antes de descer do Garcia, e também por isso, havia enxergado de longe, e de camarote, o início da tortura, e quando fui pedir informações ao motorista, achando que poderia estar a par da situação, tive que acordar o sujeito que pousava os pés com as meias pretas em cima do volante e ouvir respostas evasivas. Quem já viveu essa situação de tortura dentro de um carro, num engarrafamento, comunga junto a mim esse sofrer, que também tive o desprazer de experimentar e, assim como eu, quem o viveu deve saber de cor o Credo e a Santa Maria Mãe de Deus Rogai por Nós Pecadores.
Pois foi justamente quando dava a volta no posto quando Ela, A Chuva, mais sem nenhuma culpa de piedade cristã, desabou de vez, trazendo sapatos, garrafas, sacos de lixo, pedaços de galhos e ferocidade de correnteza, como se uma barragem houvesse estourado, como se a porteira, a chave da cadeia houvesse se arrebentado e Ele, o Monstro de Águas Doces, exalando toda a fúria acumulada, estivesse se revelando sem pudores para humanidade. A diferença entre garrafa pet, ônibus ou gente para Ele se resumia ao peso em massa: gramas, quilos, toneladas. Em som gutural e desesperador de monstro, era como se estivesse proclamando: “Nada me interessa: só o mar, a Baía de Guanabara... (pausa) que não sei onde fica, mas sinto que é por aqui... Chega de prisão, solitária, imundície, calor, concreto, buzina de carro... me soltem, me soltem...”
Avistei próximo o mesmo cinegrafista da mesma cena do homem com o jeans encharcado, estava armado com a grande câmera na margem da desgraça captando novos horrores para o noticiário da madrugada: bombeiros amarrados a cordas retiravam um a um que ainda permaneciam dentro dos carros que já contavam com ondas nos pára-brisas laterais. Um jovem segurando uma mochila e uma mulher de meia-idade que estava imóvel, creio eu de pânico, eram trazidos pelo bombeiro a passos lentos na raridade da calma que se deve ter quando se põe pé ante pé no imprevisível enquanto uma forte correnteza arrastando ondas lhe forçam o peito rumo a um lugar onde você não tem a mínima idéia onde vai dar, um lugar que parece ser um outro mundo, o outro lado.
As pessoas ao alcançarem a margem onde estávamos como meros expectadores da desgraça ora tremiam, ora caíam no mais do que compreensível pranto. Quando saí daquela margem do rio que havia invadido a Radial Oeste, um bote inflável do bombeiro estava rumando para o ônibus mais distante da outra margem no intuito de salvar outras vítimas.
Enquanto isso, no Select, um curioso clima de descontração, alguns bebiam cerveja, sem camisa, outros jogavam baralho. Outros ainda davam uma de repórter-cidadão, gravando e fotografando cenas da catástrofe pelo celular, enviando os dados para as emissoras de televisão e rádio que cobriam a calamidade.
Eu havia me decidido a tentar um plano que foi muito bem sucedido. Da mão para quem vai para o Méier, talvez devido à recente construção da reforma de uma via do metrô (Pavuna-Botafogo), a pista não estava ainda alagada, eu poderia então alcançar a próxima estação e pegar o metrô. Nesse bom trecho rumo à estação, a cada passo, ia percebendo à minha esquerda, onde o Monstro se projetava, o seu poder, Noé se estivesse vivo teria que ter construído um transatlântico daqueles que ancoram na baía de Búzios no verão. Chegando perto da mureta e olhando para baixo, não minto: ondas em sequência, um swell invadia a metade das bombas de gasolina do posto que ia ficando para trás enquanto eu me aproximava da Estação de São Cristóvão. A cena era digna de filme de Homem-Aranha e Super-Homem, mas eles só aparecem em cidades parecidas com Nova Iorque, aliás, nem isso, vide World Trade Center, quer dizer, alguns americanos juram ter vistos uniformes azuis e vermelhos por debaixo das capas dos bombeiros, mas isso é outra história e aqui só cabe a do Monstro das Águas Doces.
Entrei num metrô entupido por volta das 22h, embora os cariocas critiquem, era o único meio de transporte em movimento cinemático na cidade, e desci na Estação Maracanã. Isso mesmo: no coração do Monstro. Maraka’nã em tupi-guarani significa um pássaro, o papagaio, que faz um som semelhante (nã) a um chocalho (maraka). Aquilo não era um chocalho era uma orquestra daqueles ganzás gigantes, com formato de bazucas, tocados por percussionistas bacanas. Minha idéia, portanto, seria contornar o prédio da Uerj, que, diga-se de passagem, o Monstro deve detestar, não só pela sua feiúra de edificação, mas pelo peso que deve fazer em cima dEle, e me aventurar pela elevada rua 8 de dezembro que vai desaguar (concordo não ser elegante essa metáfora numa hora dessas) na rua da minha morada, a Torres Homem. No caminho consegui fazer contato com a minha companheira (ainda não consegui arrumar um termo melhor), que a essa altura estava ilhada no Hospital Pedro Ernesto onde trabalha e, numa leve distração do Monstro, conseguiu levar seu carro até essa rua elevada. Pela primeira vez o piso da garagem do meu prédio contava uns 5cm d’água.
Da TV do meu quarto, deitado na cama, após banho e comida, aquelas imagens parecem um mundo distante e molhado, reconheci as filmadas pelo tal cinegrafista, quando estava eu ao seu lado também filmando com a minha memória. Às 2h da madrugada do outro dia, antes de dormir, da minha cozinha mirei com penar ao longe as luzes embaçadas pela água, ou melhor, por Ela, que desabava pelos casebres de cima do Morro dos Macacos.
Por coincidência ou não acabo de escrever essa crônica às 16h42m da terça, 6 de abril, o day after da hecatombe. Soube que nos Macacos morreram até agora três pessoas. No posto de saúde onde trabalho, na comunidade da Grota em Niterói, segundo as únicas enfermeiras que acabaram de chegar por lá, havia até pouco tempo quando telefonei, três cadáveres embalsamados em lençóis: um idoso, uma criança de 2 anos e uma mulher, mãe de gêmeas. Várias famílias estavam acampadas no Colégio Estadual e na quadra da Escola de Samba.
Aqui em Vila Isabel, ouvindo da janela, ainda se houve chocalhos e ganzás.
Não quero aqui fazer um estudo, um ensaio sociológico e geofísico da causa da catástrofe e nem tenho estofo para tal, mas é impossível não terminar essa crônica desmitificando Ela, A Chuva, que não é vilã coisa nenhuma, nem anti-cristã, ou algo do tipo, nem a primeira nem a última chuva tropical dos meses de março e abril no hemisfério sul. As conseqüências dEla e a ferocidade dEle, o Monstro das Águas Doces, não me restam dúvidas que são resultados das nossas ações, em relação a Ele especialmente e diretamente como já relatado em linhas atrás desde os idos de D. João, O Clemente.
Todo esse lugar-comum necessário e repetitivo dos fatores que estamos cansados de consumir na mídia não só em relação ao Rio, mas sobre toda cidade que sofre desse mal, invadem os noticiários: planejamento urbano inexistente na maioria dos cantos dessa cidade, resultando no desmatamento das montanhas para construções precárias de moradia; corrupção das autoridades políticas, heranças antigas e o excesso de lixos nos córregos dos rios e nas vias de drenagem do esgoto sanitário. Este último tendo como fator causal mais importante a desvalorização do ensino e conscientização por parte das autoridades autoritárias que não falam, mas quem entende telepatia como eu é fácil ouvir: “não adianta ensinar pra pobre, que ele não aprende, além do mais, se ele aprender alguma coisa pode dar tanto trabalho, sem falar no perigo de...” Nesse momento, mesmo para quem entende de telepatia como eu não consegue mais ouvir, deve ser cochicho telepático.
Acredito que, se temos tecnologia para pesquisar água em Marte, não sofremos de escassez de técnicas científicas para evitar essas catástrofes, ou seja, não é por falta de “evolução” e de “progresso científico” que ainda sofremos como homens das cavernas, mas sim pela iniqüidade na distribuição da riqueza.
Então chego onde queria chegar: a cena de guerra dos mortos que estão a essa hora no posto de saúde onde trabalho existe porque a cena anterior de estarem conseguindo comprar ou alugar um apartamento num bairro de classe média, não falo nem Leblon, ou Ipanema, não teve a mínima possibilidade de existir. No Jardim Botânico houve e ainda está havendo enxurradas de água até a barriga, mas não chega a ter mortos da classe média, muito menos alta. Desafio a quem possa interessar, me trazer um caso de morte de alguém das classes mais abastadas devido a esses desastres “naturais”, seja nas enchentes em São Paulo, Rio, BH ou nas secas mais rachantes do Sertão nordestino. Pode-se até contar nos dedos, mas a diferença em relação ao número de mortes da classe pobre é desleal até para critérios estatísticos.
Desculpem o teor marxista, comunista, socialista ou o que quer que seja sobre o capital. Na verdade, me recuso a rotular os seres como “istas” e seguidores de “ismos” por acreditar que são plurais demais para tal, mas é que em quase toda discussão sobre qualquer assunto de uns tempos pra cá: saúde, educação, cultura, cerveja, futebol, venho concluindo e defendendo que a causa de todos os problemas vêm do excesso de acumulação de capital por parte de um punhadinho de gente. No mínimo estranho , né não?
Não, estranho mesmo é o Monstro das Águas Doces, esse aí sim...