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sexta-feira, 5 de setembro de 2025

o puxador de sonhos

Não era São João. Quando ultrapassei a porta pela primeira vez, o lençol o embalsamava. Em poucas circunstâncias, ele cedia, arreando a barra do lençol para debaixo dos olhos. Ele estava vivo, mas se fazia de morto. José era o paciente mais difícil para a equipe de enfermagem do 9º- andar do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco: recusava medicação, diálogo, comida e procedimentos. É daqueles que causa rebuliço de vozes pelo corredor:

- José hoje tá que tá!

- Sabe de uma coisa? Se quiser morrer, que morra!

- Bicho cabuloso, se não quer ajudar, que dê a vaga pra outro...

Em nosso primeiro encontro, não me lembro ter dito mais de duas frases, recheamos nosso espaço de silêncio em aproximadamente uma hora. Eu sentado, ele se fingindo de morto, embrulhado da cabeça a baixo pelo lençol bege. No final mandei um “até mais ver”. Na outra semana, também numa segunda-feira e num horário semelhante, estava eu, a cadeira, o embalsamado e um violão como um novo visitante. Falei menos ainda, no entanto o silêncio foi quebrado por alguns acordes desarranjados. Às vezes parecia que ia dar numa canção, em outras se desgarravam, talvez num impulso de começar tudo de novo. O lençol escorregou embaixo dos olhos, o tempo da visita terminou, outro até mais ver. Ao sair da enfermaria, onde ele estava “sepultado”, apertei o botão do elevador e olhei meio desconfiado para o violão dentro do do seu case preto.

Estava no início do 3º- ano de medicina e pertencia a um grupo recém-fundado, “O Caminho”, que já pintava umas fachadas estranhas, porém interessantes aos olhos alheios na velha estrutura do hospital universitário. Eram grupos pequenos de estudantes que iam visitar toda segunda à tarde pacientes que, antes da primeiro encontro, nunca haviam se visto. Um projeto de extensão universitária. Havia música, teatro e até um espaço para se assistir a filmes, escolhidos pelos próprios pacientes, chamado “cine-enfermaria”. E ainda se discutia notícias nacionais e internacionais através de jornais e revistas novas.

Como eu era um dos veteranos do grupo, as auxiliares de enfermagem desse 9º- andar, que eram parceiras do projeto, incubiram-me da tarefa mais difícil: “dar um jeito em José”. Uma estudante desse grupo já havia tentado, mas havia se frustrado em lágrimas.

Conforme fazíamos, antes da primeira visita não recorri ao prontuário para saber de sua história clínica, o que era um dos objetivos do projeto: despir-se do jaleco, abrir-se da defesa da impessoalidade. Apenas por volta do terceiro ou quarto encontro, descobri que José, um jovem de trinta e algo, havia sido vítima de uma tragédia, já banalizada pela imprensa: teve sua bicicleta roubada e um projétil de arma de fogo lhe roubou o prazer de andar com as próprias pernas.

Naquela hora vi o errado que abraçava o mundo, um cinto apertado na linha do Equador. O roubo, o bairro chamado Linha do Tiro, seres humanos que ganharam dinheiro na fabricação e venda daquele revolver e daquela bala, acontecer isso em quem muitas vezes só tem as pernas como opção de meio de transporte, a pele parda, o estreitamento do caminho, a esperança encurralada.

Por trás da tragédia, havia um palco com outras possibilidades sobre o qual me apoiei e compreendi o porquê da música servira como um eficiente instrumento de comunicação entre nós. José havia passado grande parte da vida num posto social que o destacava perante seus vizinhos. Era “puxador de quadrilha”, daquelas estilizadas com visibilidade na imprensa durante o mês de junho. Coordenava e planejava a coreografia, as cores dos vestidos e das camisas, escolhia as músicas. O baião e o forró eram seus gêneros musicais prediletos. Mobilizava a comunidade onde morava, injetava em bolus ampolas de vida no terreno da violência. Era, na real, um puxador de sonhos.

No terceiro ou quarto encontro, já trocávamos algumas palavras e a barra do lençol já se encontrava na linha do tórax. Depois disso, não lembro em qual visita, propus que coordenássemos dentro da enfermaria uma quadrilha fora de época. Não sei bem se sua expressão na hora era definida, mas se percebia que ali estava se iniciando um duelo entre o possível e o improvável. Pois o impossível já se vinha diluindo desde o silêncio, quando José se fingia de morto.

As cinco semanas seguintes foram de puro trabalho: pesquisa da origem das quadrilhas (descobrimos que os matutos dançavam passos de nobres), escolha do repertório, elaboração dos diálogos do padre, noivos, delegado, dos sogros, de todo aquele teatro. Acho que foi a primeira vez que o vi sorrir.

 Chegavam as auxiliares de enfermagem e elas me agradeciam. José não só estava se alimentando melhor, como também estava colaborativo com as medicações e os cuidados de higiene. Eu levava toda semana um micro system e alguns CDs de forró e baião. O ano era 2002. Ouvíamos, discutíamos sobre as letras e acabamos elegendo o repertório em cima de uma coletânea de Dominguinhos. Por algum tempo, o parceiro do leito ao lado, eram dois nessa enfermaria, nos ajudava, pois além de gostar das canções havia cantado na noite.

Lembro-me de uma tarde memorável um pouco antes da quadrilha. A noite já caía e com pandeiros e violão, auxiliado por outros parceiros do projeto, fizemos uma mini-serenata. Acabamos registrando tudo em vídeo. O côco comia no centro, José já sentado com o encosto da cama levantado, a barra do lençol nos pés, batia palmas, remexia o tronco e dava gargalhadas.

Voltei para casa espantado com o poder da música. A depender de sua manipulação, um instrumento tanto do cuidado quanto do descuido. Faz as pessoas sentirem saudade, medo, força para viver, melancolia. As cornetas que ajudam nos campos de batalha um homem matar um desconhecido, o ilú do candomblé que favorece o transe e convida as entidades a participarem da dança, o hino do time que amolece os corações mais endurecidos, a música do casal que acabou de completar bodas de metais preciosos, e do outro casal, no mesmo baile, que acabou de se apaixonar ou se desfazer. A música da paixão, a música da guerra, a música da evocação dos deuses. Às vezes a linguagem do próprio divino, do religare.

Em outra circunstância, ele me deu a impressão que iria desistir, como se percebesse que aquilo não passava de uma palhaçada. Estava na cara que não daria para ele voltar ao que era e que, de volta à comunidade, terra onde não faltará dificuldade a mais, sentindo-se em um navio afundando, o corpo inútil que tem um certo peso jogado ao mar, ele temia ser escanteado quando da sua volta. Se a ausência de carro ou van para transportar a quadrilha para os ensaios e apresentações já era difícil, imagina agora sem pernas e numa cadeira de rodas? E se conseguir uma cadeira, pois até agora ninguém havia se pronunciado... Era melhor ter morrido, era o que eu ouvia muitas vezes nos subterrâneos do seu silêncio.

Não era São João, mas o hall da enfermaria do 9o andar foi enfeitado de bandeirinhas e balões e era palco de desfile das matutas dos mais coloridos trajes. Chapéus de palha repousavam junto aos pés-de-moleque e pamonhas em cima de uma mesa. Apareciam novos cavanhaques e bigodes a lápis de olho. Foram convidados pacientes, acompanhantes e profissionais não só daquele andar, mas também de outros.

Chegavam em cadeiras de roda, sustentando os soros, outros carregavam bolsas de enterostomia. Ali abatidos, acolá se mantendo em pé, aqui um que acabou de receber alta e comemora a ida em alto estilo. José, já portando um daqueles chapéus, engatilha o microfone e convida os casais para um passeio na roça. Havíamos ensaiado umas duas vezes, eu ali servindo de “assistente de direção” fazia a ponte de comunicação, pois ele se aborrecia com os passos em falso e a falta de sincronia. No dia D não deu para perceber deslizes.

Ele ia a toda com a cadeira de rodas, como se abrisse o Mar Vermelho “cavalheiro de um lado e dama do outro”, ai quem ficasse na frente. Parecia estar segurando uma batuta e se descabelando perante uma orquestra.

Pouco tempo depois recebeu alta, ganhou uma cadeira de rodas de uma instituição beneficente e ensaiava o retorno para casa. Senti um banzo de ter perdido um amigo quando encontrei o leito vazio. Prometi-lhe uma visita, levar um VHS para assistirmos ao vídeo da quadrilha. Não consegui, a roda-viva me abocanhou. Não sei se vive, ou se já puxou outras quadrilhas depois disso. Tomei-o como exemplo de superação. O seu amor pela dança e pela música arreou o manto da desesperança, empurrou-o a se levantar, mesmo sem as pernas.

Agora não era mais São João. Era São José. José são.