Minha
querida Raquel, te escrevo esta carta do depois para me lembrar para sempre.
Apesar de não termos sido tão próximos, a distância se diluía com o tamanho dos
nossos sonhos. Fomos colegas de trabalho, mas de um trabalho sem salário,
ganhávamos um lote de esperança a cada encontro, o que nos saciava mais do que
qualquer centavo.
Trabalhávamos madrugadas e finais de semana pagos pela
certeza do caminho ao sul utópico de Torres García, do cinema nacional soberano e da universidade
pública de qualidade. Passamos mais de um ano semeando a trajetória do mini-doc
em homenagem à Uerj, Estado de Desmantelo, título que a Clarissa Nanchery
escolheu primorosamente.
Tive a oportunidade de realizar um sonho adolescente,
mesmo que a duras penas e com todos os percalços e surpresas que uma produção
permite. Valeram as inúmeras viagens com amontoados de lixo que fiz do Hospital
Pedro Ernesto à Uerj, as inúmeras ligações aos funcionários auxiliares de
serviços gerais das empresas terceirizadas, a classe mais oprimida, e
justamente por isso a protagonista do nosso vídeo, valeram os ajustes e
contatos com as preciosas estudantes de medicina, algumas médicas hoje em dia,
as discussões com John CM e a sua perseverança na fotografia mais impactante,
que ficou linda e a generosidade de Alê Borges e Sílvia Boschi.
O que foi aquela surpresa aos 45 do segundo tempo de termos
uma funcionária varrendo o chão do mesmo corredor do set de filmagem? Lembro a sua euforia em resgatá-la para o set e do quanto ela percebeu a importância
de amplificar a voz abafada dos mais frágeis, daqueles que foram os primeiros a
sofrer com a ausência de salário nas vésperas do natal de 2015. O projeto
macabro de exterminar a universidade pública com maior inclusão social do
Brasil foi iniciado com a humilhação aos mais necessitados, e foram eles no
decorrer do desmantelo os que realmente ficaram sem salário algum.
Eles
foram a fogueira necessária para irmos adiante aquecidos de esperança. Lembro
com muita felicidade daquela noite regada a cerveja na minha casa em que você,
Bruno Sicuro e eu decupamos o vídeo, preparando-o para a edição de Clarissa.
Aquele luxuoso encontro na casa de Jordana Berg, no quartinho de sua ilha de edição nos fundos.
Era noite e desde manhã cedo ela vinha editando o documentário sobre o golpe. O acolhimento, o incentivo, as dicas, saímos de lá com um latifúndio de esperança e fomos
bebemorar na esquina.
Desde “O Óbvio”, do Bruno, percebi que ali havia a presença competente de
algum profissional do ramo e, nesta época, a paixão de vocês foi salpicada
naturalmente neste vídeo contundente e necessário. E toda esta trajetória de
amor entre vocês nos contagiava e nos impulsionava a produzir, era a base e matéria-prima para exportação de sonhos.
Um casal pluripotente
que unia paixão, música, cinema, road trip, boemia e militância social em torno
de uma charmosa Kombi da década de 60. Foi o casal mais beatnik que conheci.
Lua de mel com cachaça. As festas e histórias em torno da Magnólia eram as
melhores e as mais quentes.
Tive
a felicidade de tocar com as bandas Empenha e Harmonia Enlouquece em festas com
a Magnólia, inclusive tendo ela como cenário. Tive o prazer de manejá-la bêbado
dentro do Rio Centro, depois de uma festa, completamente perdido à procura de
uma saída. A saída para o golpe e todo este lamaçal em que nos afundamos era a
Magnólia, a integração cultural com a esquecida América Latina, o sonho de ir
além. Minha querida Raquel, você sempre estará associada à perigosa e
necessária capacidade de ousar.
Juro
que estava ansioso em trabalhar naquele projeto sobre o feminino que seria o
trabalho de conclusão de curso da segunda residência médica do Bruno, e
imaginava muito mais: cine-clubes com a Magnólia discutindo Glauber, Buñuel e
Sganzerla; Magnólia Vai Nordeste; Magnólia Vai Cuba e Jamaica; Magnólia Vai
África; Magnólia Vai Leste Europeu; Magnólia Vai China.
Quando Bruno me falou
do projeto da América do Sul em um bar na Tijuca, meus olhos brilhavam. Ele
havia naquela semana ido atrás do Paulinho Moska para convidá-lo, porém ele estava justamente em um projeto semelhante com uma outra turma, ou seja, o
projeto era quente e necessário. E Magnólia foi mesmo assim, com o nosso
querido Diogo Martinz como frontman musical. Quanto foi a minha alegria em
acompanha-los pelos posts tarde da noite no FB mesmo arrasado de cansaço.
Iríamos
nos encontrar naquele trágico dia de dezembro, eu tocava com o Empenha no congresso municipal de medicina de família na UFRJ, onde possivelmente você chegaria com Bruno e a Magnólia.
Fiquei sabendo
da pior forma possível, após o show por um grupo de zap antigo, de pessoas distantes. Enquanto
o pranto e o chão caíam, busquei ficar perto dos seus, estavam todos na
casa da Lorena. O ambiente naturalmente pesado, cinza, silêncio
sepulcral cortado por choros que pipocavam aos soluços. Pensei do quanto
que você não gostaria que assim ficássemos e comprei várias garrafas de
cerveja, propondo brindes a sua felicidade e a sua esperança na vida que sempre
nos contagiou. O clima deu uma aliviada. O nosso amigo-irmão Puig foi essencial
no suporte emocional de todo esse processo, infinitamente solícito.
Fiz
questão de entoar o coro de canções no seu enterro com a Clarissa, claro que
Belchior e Novos Baianos estavam no repertório. Foi uma forma de me posicionar
no enterro mais triste da minha vida. Fui com o seu pessoal do cinema tomar umas em sua homenagem na Cantareira, onde você adorava.
O fato de a
tragédia ter acontecido justamente com a Magnólia no período histórico mais
tenso da nossa vida adulta neste país não pode ter soado diferente de “o sonho
acabou” para a nossa geração.
Fiquei entalado meses até te escrever, os
inúmeros amigos estão cuidando de Bruno, que vem se mostrando a fortaleza
assim como tenho a certeza de que você gostaria que fosse.
Minha
querida Raquel Stern, termino esta carta derradeira no começo da primavera te
dizendo que o sonho está vivo, as flores teimam em crescer e se eu nunca perder
a capacidade de me indignar e me transformar você será certamente uma das
culpadas.
Beijos
do amigo,
Alfredo