Porque hoje é sábado eu leria o conto Hills Like White Elephants, do Hemingway, só porque estou na fase pilhada com o autor em busca da macroeconomia do texto. Usaria o google tradutor a tiracolo para salvar palavras que desconheceria para usar em futuros poemas, leria pausadamente em voz alta, mas não muito, e quando estivesse em dúvida da pronúncia iria novamente ao Tradutor para ouvir a clareza de um sotaque padrão BBC / PBS. Tentaria o original no scribd onde geralmente acho tudo. Depois pegaria no violão I Fall in Love too Easily, não na versão Sinatra, mas do meu favorito Chet Baker naquele seu segundo disco de 56, e depois de muito treino gravaria no celular e enviaria para grupos de zap muito seletos pedindo para prestarem atenção na interpretação naquela passagem. Tudo muito chato virginiano, mas faria.
Porque hoje é sábado todas essas ações seriam acompanhadas pela minha única garrafa de vinho que tenho em casa, a Porca de Murça 2012, do Douro, uma mania familiar. Mestre Giba, seu avô materno, descobriu que esta "porquinha"conseguiu 90 pontos no Wine Expectator, não contamos para quase ninguém, e o Zona Sul, que o importa, parece não se importar com o preço.
Por fim, neste mesmo sábado, acabaria de ver no Netflix o documentário Empire of Dreams, sobre a primeira trilogia do Star Wars para ficar imaginando durante toda a semana: por que George Lucas insistiu profundamente num gênero fadado ao fracasso para a década de 70? O que faz com que pessoas como ele, Van Gogh, Freud, Cristo, Marx insistirem em temas e linguagens que todos os amigos mais próximos recomendam não mergulhar, alertam do fracasso, e eles persistem apesar de tudo e de todos? Será que ouvem vozes? Possuem alguma segurança sensitiva metafísica ou espiritual? Cristo foi claro em dizer que sim, mas e os outros?
Hemingway, Baker e Lucas que me perdoem, mas você, fiote, acordará em menos de 30 minutos e eu tenho uma lista de recomendação de zap de sua mãe para nada esquecer de como devo vesti-lo, alimentá-lo e armazenar suas mochilas. Chamarei um Uber e iremos nós dois rumo a um casamento no Catete.
Lá muito provavelmente irei fazê-lo rir de como um personagem tosco de um vídeo no youtube levanta a mão, como quem responde presença, durante a música "Old McDonald had a farm..." e você gargalhará. Eu não abri mão da "porquinha" e cantaremos juntos o seu pout pourri de canções, grande parte infantis, acharei graça quando esquecer alguns versos e você não. Curtirei ao máximo quando você começar O Mar, de Caymmi, imitando a minha tentativa de imitar o baiano no final da 1a estrofe, naquele grave extremo "é bonito...".
Tudo isso justamente porque hoje é sábado e Vinicius faz muita, muita falta neste Brasil careta e insuportável.
sábado, 26 de agosto de 2017
carta para Tomás de um sábado qualquer
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quinta-feira, 17 de agosto de 2017
carta para Tomás s/n
Fiote, são 4h35 e o galo canta em Paraty Mirim. Estou
sentado no chão frio de inverno, encostado ao frigobar, único canto do quarto
em que a fresta da luz do banheiro, com sua porta recostada, me permite iluminar
o teclado do meu laptop. Viemos passar 3 dias no litoral sul fluminense no
final de suas férias intermináveis.
Desde que você nasceu escrever é um ato de resistência,
sempre me lembro de Hemingway, “você deve escrever como quem caça leões”. Na
minha juventude interpretava esse conselho como se houvesse a necessidade de se
estar nu emocionalmente diante do texto, quando todos os sentimentos primitivos
de raiva, coragem, medo e amor são atirados no papel como tintas ao quadro e
somente muito depois burilados na mais alta sofisticação racional. Acho que era
isso ao que o americano-cubano se referia, mas também, e agora não tenho mais
nenhuma dúvida, ao ato de resistência que é escrever em situações adversas tipo
guerra, cárcere, caçadas na savana africana e filhos pequenos. Como diz uma
colega professora da Uerj, “o que é mais forte, permanece”, e eu fico feliz em saber
que escrever está em meu sistema nervoso autônomo, porém melancólico ao notar
que, para conseguir um horário comercial reservado, muitos leões africanos
precisarei abater.
Existem outras duas cartas para você ainda incompletas
porque escrever não é igual a desenhar caracóis. Primeiro se ordena a ideia do
texto na cabeça ou no papel, depois se joga as tintas do Hemingway, o que
raramente acontece de uma só tacada, depois vem o superego e diz “que
porcaria!”, aí você toma uma cerveja e acha o texto lindo, só depois, sem
cerveja, você passa pela fase final chata de edição, que é geralmente
esfoliante, e quando publica sente novamente aquela sensação de nudez e se
pergunta por que mesmo eu preciso, com ou sem personagens, me expor a este
ponto? Aí depois de vários ciclos desses, você se acostuma e relaxa
parcialmente. Já o caracol que eu desenho para você é completamente intuitivo,
colorido de afeto, sem amarras e sem leitores imaginários, como me alertava Raimundo
Carrero, pousados em meu ombro lendo em streaming palavra por palavra. Ou seja,
desenhar caracóis é muito mais legal.
Mas vamos ao ponto G desta carta: três dias atrás sua mãe e
seu avô foram com você a Teresópolis e eu tive uma tarde e uma noite de férias
depois de 2 anos e 2 meses, não por acaso a sua idade, no novo bairro onde
moramos, o verdejante Jardim Botânico e isso se tornou simplesmente uma
aventura. Rapidamente tracei o roteiro: 1) dormir (sempre!) ao começar qualquer
roteiro, mas não muito, estipulei 1hora e cumpri; 2) almoçar de-va-gar,
mastigar todas as superfícies internas e externas do bolo alimentar, fechar o
olho e descobrir notas de erva doce no quiche de alho poró sem se preocupar com
o turno da tarde de trabalho ou se você vai novamente subir em cima do sofá e
mexer nas minhas caixinhas de som do home theater. Cachacinha grátis,
sobremesa, café, spotify, twitter (zap, email e fb nem pensar), café novamente
; 3) nadar, ah, nadar... a natação é a nata da ação, três meses longe da
piscina e minhas tubas auditivas repletas de muco e coronárias engarrafadas de
ateroma; 4) cortar minha tufa com Bruno, um italiano de sotaque com quem
converso sobre massas e leio notícias da Itália na sua revista da embaixada
especial para imigrantes, o objetivo desta vez é acabar de ler a matéria da
capa de um número de meses atrás sobre Antonio Patriota como novo embaixador em
Roma, não me recrimine, calculo que terei um pouco de vergonha de garimpar no
revisteiro junto a caras e contigos, não encontrar e ter de pedir a alguém; 5) por
fim entrar no grupo de zap de amigos, não me distrair, e perguntar o que a
noite do Rio de uma quarta-feira de julho me reserva.
Assim que você partiu, consegui, meio ansioso pelo porvir,
dormir apenas 1h e iniciei a aventura almoçando no caríssimo restaurante a peso
do bairro, o Nanquim. Como diminuí meu prato para 400g achei que valeria apesar
dos pesares de ser professor da Uerj, mas isso deixa para outra carta, apertei
o botão F, também outra carta. Lá é bom porque se você acertar na proteína vale.
Neste dia o peixe era salmão, é bom você saber que hoje está banalizado, mas
quando eu era pequeno este nórdico pisciano era um artigo importado de
restaurante chique, salpiquei um molho teryaki. O ponto de cozimento e a
qualidade do salmão e do molho estavam uma paleta colorida, mastiguei todas as
superfícies. Claro que pedi uma “água da casa”, o botão F não é isento de
recalques. Quero que você saiba que seu pai não tem frescura nenhuma com
comida, quando trabalhava na Penha todos os médicos de família das redondezas
repugnavam o meu hábito de comer em um restaurante bem baratinho ali perto do
trilho do trem, se é para comer uma buchada de bode estamos aí, meu órgão de
estresse não é o intestino, mas as vias aéreas superiores. E por isso a natação
e, devidamente orientado pela minha otorrinolaringologista, Lúcia Joffily, a
busca incessante pelo mar, mergulhar, surfar, esquiar, velejar... Apenas busca
incessante mesmo.
A piscina do clube militar, sim, militar, é o único clube
que dá para eu ir a pé e a piscina tem 25m, é limpa, aquecida e tem vista para
o Corcovado, não me recrimine. Pois bem, a piscina do clube militar me dá
sempre vontade de tirar uma foto e fazer um post tipo #natação #eumecuido
#euconsegui, mas acho piegas pra cachorro qualquer coisa neste sentido e no
máximo tiro uma foto e mando pra sua mãe, sem nenhum comentário.
Nadei como de costume, desde que você nasceu, meus 1000
metros que na minha cabeça é sempre a metragem necessária numa frequência
irregular de treino para o grande retorno triunfal à época em que eu percorria
2km em 45 min. Como estava de férias por um dia, decidi conhecer a sauna do
clube. Senti-me numa casa de banhos do início do século XX rodeado por Benjamin
Constant e Floriano Peixoto, velhos barrigudos trajando apenas um modelito
havaianas e toalha no ombro, nus, mal encarados, sem fixar o olhar, muito menos
boa tarde, andando da sauna para a ducha, da ducha para as espreguiçadeiras que
dão para a TV de LED sintonizada na Globo News. Para aperfeiçoar um clima
positivista militar de direita, a longa matéria era sobre o vandalismo na
Venezuela. Caço um diálogo entre um desses velhos e um jovem, único além de
mim, sobre história militar e o quanto leis marciais implementadas nas guerras
franco-prussianos foram importantes para diminuir a crueldade das guerras.
Chamam carinhosamente uns aos outros de “oh, viado!” e, graças ao meu olhar
clínico diagnostiquei alguns micropênis, mas me retive na oferta de qualquer
consulta.
Vi uma porta no fundo do corredor “massagem e repouso –
silêncio absoluto”, mas fiquei com medo de grunhir alto ao apertarem meus
pontos gatilhos musculares e levar uma chinelada. Dei meia volta e flutuei,
assim como em qualquer pós natação, rumo à tesoura do italiano. Aproveitei a
longa lavagem morna por entre as madeixas de minha tufa, chateei-me como de
costume de ter cortado além do desejado e tive vergonha de pedir o número da
revista da embaixada. Pronto, havia cuidado da minha saúde e da minha beleza, o
que fazer agora no início da noite deste bairro verdejante? O JB, meu filho,
tem este ar ecobelofitness, e achei que seria uma frase compatível para a
ocasião. Comprei uma Carta Capital e um jornal Globo, não me recrimine
novamente, na minha banca predileta, esquina da rua JB com a Lopes Quintas. Eu
adoro jornal, fui editor do jornal do diretório acadêmico na faculdade, fiz um
projeto longo e criativo, que não saiu literalmente do papel, assim como
inúmeros outros projetos mirabolantes que seu pai faz, chamado A Massa, um
jornal tipo Pasquim para os dias atuais ainda na época de Recife, cheguei
inclusive a juntar obviamente uma redação também quixotesca em algumas
reuniões, meu vereador recifense Ivan Moraes Filho que o diga, enfim, desde que
o Jornal do Brasil morreu e que a Globo atuou a plenos pulmões no golpe de
2016, decidi não mais comprar jornal aqui no Rio, mas às vezes a tentação é
grande, eu adoro jornal e revista, não iniciei na leitura com livrinhos
infantis. Na verdade mesmo, em matéria de literatura, eu sou um grande leitor
de revistas, fui assinante da Fluir, Playboy, Veja (não me recrimine novamente,
parei de assinar depois da capa do Stédile em 1999) e Continente Multicultural
(hoje Continente). Lia tudo obsessivamente de cabo a rabo, muita saudade da era
pré-internet em que a gente focava em um único objeto, sem o vício horripilante
de checar zaps. E eu já achava revista uma fonte por demais distraidora, porém
venerava ler economia, ver anúncios publicitários, misturados a ensaios
inteligentes e resenhas de filme bom.
Então estava eu ali em frente à banca com uma noite à minha
espera e não me contive, comprei o Globo, há outro detalhe, eu não aguentava
mais a cara de recriminação do vendedor careca quando eu levava apenas uma
Carta Capital. Fui caminhando com os folhetins embaixo do braço sem medo de ser
chamado de coxinha ou mortadela rumo ao Belmonte. Não emborquei a Carta na
mesa, deixei a capa para cima e abri em frente ao chopp o primeiro caderno do
Globo para que todos vissem que se tratava ali de um homem sensato, analítico,
que disseca as entrelinhas de qualquer órgão da imprensa independente dos
interesses político-econômicos, mas não passava na real de um pai de filho
pequeno hipomaníaco numa noite de férias. Meu filho, poucos prazeres na vida do
seu pai se assemelham a ler no bar, ouvindo música com headphone bom e fazendo
anotações de insights para projetos mirabolantes que não sairão do papel.
A dica para a noite foi Chorinho na Glória e Jazz na Praça
Tiradentes com o alerta de estarem lotados. Prefiro ouvir todos os agudos e
graves do álbum que escolher tomando um drinque no silêncio sepulcral da nossa
sala da rua Faro. Mas aí veio uma dica que se encaixava perfeitamente com a
vibe das mini-férias: um evento descolado que acontece apenas mensalmente no
Parque Lage entre 19h e 22h. A carga do meu celular, e da minha música, daria
exatamente para mais um chopp e para a caminhada até o Lage. Li meia matéria de
capa da Carta sobre o Temer e seu pescoço de ouro, e menos da metade do primeiro
caderno, ensacolei os folhetins junto à toalha e sunga molhada da natação e me
senti nas férias da faculdade em Recife, quando pegava ônibus até o Centro
lendo livro de poesia, transpassava a noite, e ia tomar uma saideira na praia
de Boa Viagem no outro dia, mas quando se envelhece o tempo se comprime.
Arto Lindsay, uau, o cara que redescobriu Tom Zé junto com David Byrne, que já
produziu Caetano, Marisa Monte e Orquestra Contemporânea de Olinda tocaria uma
guitarra junto com um dj que esqueci o nome. Parque Lage é o verde humanas do
JB, lá tem a Escola de Artes Visuais e todas aquelas exposições contemporâneas
esquisitas. O que me pega lá é aquele tom sombrio da arquitetura apesar do
pátio interno solar, acho que esse peso que sinto tem a ver com os velórios de
Di Cavalcanti, que Glauber filmou e depois o próprio foi velado lá e obviamente
também filmado. Sou fã do Glauber, portanto o que eu sinto lá é muito mais o
peso da história do que possíveis assombrações do nobre e sua amante para quem
a casa foi construída.
O show foi bem Escola de Artes Visuais, ininteligível,
kitsch, barulhos altos de distorção em músicas sem melodias, loops com gritos e
palmas, mas o lugar do show, uma varanda lateral da biblioteca, fiotão!, foi um
achado: comecei a bolar o projeto de lançamento do disco do Empenha, uma banda
que seu pai faz parte, bota muita fé e quer mudar o nome. Fui encher o saco do
produtor do show, queria saber o passo a passo para conseguir a varanda. Ele
disse: “o projeto tem que ser de arte contemporânea”, respondi: “minha banda
possui muitos elementos de contemporaneidade”; “arte contemporânea é diferente
de contemporaneidade”. Quando acabarmos de gravar o disco, irei de chapéu e
óculos escuros carregando um livro de Bourriaud bem naturalmente.
Flutuei mais uma vez de volta para casa. Um meio sorriso
intermitente ocupava minha fisionomia, tinha duas certezas, o dia tinha acabado
antes de 23h, eu dormiria como nunca, mas antes eu precisaria escrever esta
aventura. Desabei e nem uma palavra, por isso vim caçar leão nesta madrugada em
Paraty Mirim onde além do galo o pavão emite barulhos quase humanos e o ganso
bica quem chegar perto do ninho.
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