Filhote,
seu pólo cefálico coroou no pólo sul da mamãe e eu estava lá, em transe. Escrevo
esta carta para lhe narrar a experiência mais visceral que seu pai já viveu, sei
que é chato fazer pedidos, mas gostaria que você a relesse no seu aniversário
de 60 anos, em 2075. Nem sei por que lhe pedi isso, deu vontade.
Experiência
literalmente visceral vivido por sua mãe no percurso de um trabalho de parto no
qual a primeira contração já se distanciou de um intervalo de apenas 5 minutos
da segunda e assim por 11h.
Tomás, meu
filho, você é um lorde vitoriano: já com 37 semanas esperou seu pai defender o
doutorado no dia 5, concedeu à sua mãe um prazo de uma semana a partir de sua
licença e, fabulosamente, nasceu na data provável do parto (DPP), 22 de maio,
apenas 5% dos bebês no mundo são tão pontuais. E, para ninguém ficar nervoso,
esperou o momento do passe perfeito para dar um chute mais forte e romper a
bolsa amniótica: seu pai havia acabado de chegar da aula de natação, o momento
mais benzodiazepínico da semana, e nós havíamos acabado de saborear uma sopa de
ervilha numa noite climatizada de outono. Luxo só.
Tínhamos
uma certeza, estúpida como todas as certezas, de que obviamente você não viria
por aqueles dias, sua mãe estava ótima, tinha acabado de vir andando da casa
dos seus bisavós até nossa casa, uma distância de 5,6 km, e já havia combinado
uma prainha no outro dia.
Nesse
percurso, da Gávea até aqui na Rua Faro, ela fez questão de atravessar o Jardim
Botânico, o parque construído pelo proto ecologista D. João VI, a miragem verde
sobre a qual a Lispector imortalizou numa crônica, “o ato gratuito”, onde o Jobim praticava sua religião
de ouvir passarinhos, o pedaço de chão que esconde toda a força tupã-oxóssi ancestral
desta cidade. Muitos dizem que não, por ter sido um jardim construído pela
metrópole com espécies cientificamente escolhidas de todos os continentes. Porém,
ninguém me convence do contrário: há uma grandeza de mistério e saudade no
silêncio verdejante entre o bambuzal e as andirobas. No coração, uma tamanha
fertilidade povoa aquele verde-escuro. A sumaúma amazônica, uma das maiores do
mundo, modifica as pessoas que lhe rodeiam, enraíza-nos. O passeio
despretensioso de sua mãe foi fundamental para o peteleco de vida que faltava.
Interrompe
a sopa de ervilha: “vê se isso é xixi?” Até então nunca havia presenciado uma
ruptura espontânea de bolsa, apenas as violentas amniotomias praticadas nas
salas de gritos durante minhas práticas de obstetrícia na faculdade. Não sabia
que poderia pingar. Mas era. Sabíamos que em menos de um dia você chegaria, então brindamos um vinho branco, não havia tinto na adega.
No entanto,
achava que dali em diante viria tudo lentamente, contrações com intervalos
largos... Que nada, sua mãe nem acabou a taça do brinde. A minha agonia era a
de que mesmo com contrações lhe abraçando forte de 5 em 5 minutos, eu não
poderia realizar o toque, a bolsa tinha rompido, eu não tinha luva estéril.
Liguei para Heloísa, sua enfermeira obstetra, a quem um dia você vai pedir bênça,
e comecei a rememorar os passos do período expulsivo, para mim havia essa chance
concreta... Helô chegou umas duas horas depois e pegou seu pai no flagra, eu
juro que estava com medo de uma primípara dar a luz em 2h de trabalho de parto,
praticamente impossível medicamente falando. Revelo: quando sua mãe ia ao vaso,
eu tinha medo de ver seus cabelos. Helô não deu muita bola quando lhe disse que
a contração era “rochedo”. Bom, de dinâmica uterina, pelo menos, eu estava ok.
“7cm? é boa nisso, hein?” Eu sabia que sua mãe era boa parideira desde que a
conheci em Cuba, mas 7 cm em 2h eu não esperava. Senti-me melhor ainda em
obstetrícia, tanto Helô quanto eu sabíamos que em poucas horas poderia sim que
você chegasse ali na cama dos seus pais. Heloísa olhou para mim sem sua mãe
perceber e disse “simbora!” com uma piscadela. Virei Flash, a sua bolsa estava
pronta, mas e a da sua mãe? E a minha? Havíamos nos mudado há 2 meses. Na minha
mochila ensaquei tudo que achei muito importante, uma camisa, uma cueca, livros
de Neruda e Bandeira, um caderno de anotações e uma caneta. Havia planejado que
escreveria durante o seu parto uma poesia visceral, escrita em lágrimas de
tinta, uma coisa meio Rimbaud e Rilke. Reuni todas as bolsas, peguei chaves,
sua mãe, Heloísa, estava eu com o apartamento nos ombros. Entramos no carro,
sua mãe em contrações de 5 em 5. Sempre tive uma ideia persecutória de como
deve ser o grau de tanquilidade do motorista nessas ocasiões de parto e
emergência. Respirei fundo e dirigi joão gilberto, Helô me pedia para encostar
a cada contração, e eu ali, um motorista conduzindo Miss Daisy, atendia
elegantemente. O desespero começou quando tive a certeza de que o túnel
Rebouças estaria fechado, mas não estava, não era terça-feira. Pensei em
inúmeras coisas, facas, narcotráfico, batidas, errar caminho, pisei fundo.
Consegui sair da bad trip já na maternidade, elas subiram rapidamente para o
quarto e eu me vi novamente um sujeito calmo de fala baixa na recepção, até me
pedirem o RG e carteira do plano da sua mãe. Não tinha. Antes de refazer o
percurso todo de volta, meu smartphone me salvou, havia emails antigos com
número do cartão e jpg da identidade. Primeiro conselho, filho: não apague seus
emails.
Peguei o essencial para entrar no bloco cirúrgico: livros, o caderninho,
uma caneta e um celular descarregando, vesti-me de cirurgião e encontrei sua
mãe na banheira. O quarto era pequeno, sem televisão, uma maca obstétrica de
boa qualidade e uma honesta hidromassagem no banheiro. A penumbra era
fundamental e a equipe sabia disso, Gabriela, sua obstetra, deu play numa
música meio Tinariwen ibérica, outra a quem precisarás
pedir bênça. Ainda era 1 da madrugada e sua mãe já apertava minha mão na
banheira com intensidade maior do que aquelas brincadeiras de adolescentes que
um dia você vai conhecer. Entendi que a dor era “do fim”, segundo Luiz Gonzaga.
Por aí comecei uma atividade de massagem que só iria terminar às 8h06m, foi uma
prova prática de massoterapia, tenho a certeza que ainda receberei pelos
correios o título de especialista pela sociedade de massoterapeutas, fui aprovado
pela equipe e quase tive cãibras nas mãos.
Levanta, rebola, não quer mais banheira, maca, cadeirinha, tudo doía,
claro, seu polo cefálico invadia o polo sul da sua mamãe, respira, respira.
Gostava de uma posição sentada na maca com uma perna para fora e a outra
dobrada, talvez por isso e, segundo Helô, pelo encucamento no neocórtex, uma
parte do colo uterino fez beiço. O edema só foi reduzido após a redução manual feita pela
Fernanda Satty, sua obstetra auxiliar, outra bênça, após a anestesia. O momento da anestesia às
3h foi quando caiu a ficha que estávamos numa maternidade, a Medicina arrombou
a porta do quarto. Acende a luz, desliga o Tinariwen, “pode sentar, mãezinha, e
coloque a cabeça pra frente.” Reclama com a técnica que o campo está errado.
The dream is over.
Em vez de relaxar e dormir, o objetivo da anestesia para desfazer o
beiço, sua mãe começou a não sentir do quadril para baixo, pois é, drogas mesmo
nas posologias indicadas podem causar revertério. Talvez quando você for pai ou
avô a farmacoterapia genética personal esteja
em voga. À medida que as drogas iam sendo metabolizadas, sua mãe parecia que
estava num bar em Santa, papeou com a equipe, reviu meio mundo que estava de
plantão e que não via há tempo. Pensei em catar umas cervejas na cantina. Eram
3h30m. Mas as pernas voltaram ao normal e as contrações voltaram dicumforça. Fecha o bar, liga o
Tinariwen, baixa a luz. Tentávamos evitar a posição sentada na cama, levanta,
rebola, massagem, agacha. Não queria mais banheira. O chato é que o danado do
beiço não havia desinchado, veio nosso primeiro medo de mudar de sala e irmos
para o bloco do lado. A madrugada passa rápido ali em Laranjeiras, nos
intervalos das contrações ouvíamos gritos das colegas das salas contíguas, bem
tragicômico, às vezes entoavam uma melodia, recortada com um “ya hooo!”. O
ponteiro dos minutos zunia na parede.
Senti uma injustiça imensa de não compartilhar com sua mãe as dores,
poderia ser pelo menos 3 para 1, fiquei com medo de um vasovagal, ela apagar de
tanta dor. Inda bem que havia tomado a sopa de ervilha. Fernanda entrou e falou
mansamente que sempre foi boa em práticas manuais, em manobras e procedimentos,
que iria tentar reduzir o beiço com os dedos, o edema do colo do útero, que não
deixava seu pólo cefálico avançar. Ainda restava um filete bioquímico do
anestésico. Não doeu nada, uma manobra que costuma espremer gritos. Você
adorou.
Eram 4h30 e achei que você viria em no máximo 2h, comecei a calcular seu
mapa astral, dava ascendente em Touro, apegado demais, fiz bico, mas não poderia
reclamar mais de nada, você havia esperado eu acabar a aula de natação. Vagou
um banquinho da colega do lado, que teve bebê, um banquinho nada demais, apenas
com um design para período expulsivo, lavamos o sangue da colega e testamos com
sua mãe, ela aprovou, foi assim que você nasceu. No entanto, ainda teve muita
rebolada, sua mãe caprichava nisso, Helô usava a técnica do reboso,
chacoalhando um pano tensionado nos quadris, você curtia e dançava um tipo Fela
Kuti de cabeça pra baixo.
Já havia passado o ascendente em Touro, já eram umas 7h30, e eu havia
entrado num transe do qual não lembro nada semelhante no meu passado
psicotrópico, sua mãe estava esgotada, já pedia clemência sem nunca ter sido
batizada. Sentado por trás dela e a ela abraçado, comecei a revirar os olhos e
fazer força durante as contrações para que você fosse um pouco mais abraçado.
“Vamos fazer mais três”, ou “essa é a última” foi repetido várias vezes pela
equipe, como se estivéssemos regredidos, aceitávamos igual uma criança e suas
colheres de aviãozinho. Até que as obstetras deitam no chão com o foco do
celular aceso e dizem, “põe aqui o dedo, tá aqui”. Sua mãe não viu isso, mas eu
vi pelo ângulo de cima uma contração na qual um pedaço da sua tufa apareceu e
voltou. Eu chorava.
Gabriela depois confidenciou para sua mãe que nunca usou tanto sonar
para ouvir batimento cardiofetal no período expulsivo quanto no seu parto. Sua
mãe traçava a conduta, no intervalo da contração: “vamos avaliar mais uma vez?”
Foi tanto, que chegou o momento mais tenso de todo o parto. A sua tufa já
aparecendo e o sonar emitindo uma ruidosa bradicardia, aquelas bulhas
produziram muita noradrenalina em nossas adrenais e ressonaram como aquele tema
musical de Kill Bill. Gelamos. O maior pavor da sua mãe desde os primeiros anos
de residência em pediatria eram os bebês da neurologia pediátrica, muitos sofrem
sequelas graves e morrem cedo por causa de asfixia no canal de parto, porém
esses partos são geralmente horrorosos, cheios de intervenções desnecessárias e
precedidos de um pré-natal negligente.
Sua frequência cardíaca logo voltou ao normal e, acredito eu, foi o que
sua mãe precisava para, em poucas contrações adiante, fazer a maior e
derradeira força se agachando para adiante do banquinho e fazendo com que você
ouvisse melhor o som do Tinariwen ibérico.
Filhote, você era a tranquilidade personalizada, não deu um pio, sua mãe
ficou nervosa e perguntou se Lívia, sua pediatra, bênça, não queria levá-lo,
“claro que não”, você acabou de nascer e já dava lição: “não criem pânico!”. A
felicidade jorrava dos nossos olhos e enchia toda a Baía de Guanabara, despoluindo
Paquetá, passando pela Lagoa Rodrigo de Freitas e indo até o emissário do
Leblon e Cagarras. Sem um centavo do Eike. Passei 30 minutos contados de
relógio chorando, “vai ali e pega uma gaze com a técnica”, lá ia eu “boom
diiaa, poor favor, umaa gazeee”. Levei você no berçário, mostrei-o para todos
do vidro, tirei fotos, zap, tomei um expresso e uma água. Tudo chorando.
Fernanda e Gabriela me revelaram que fizeram questão de serem exatas nos
minutos, tinham reparado em mim calculando o seu mapa. 8h06m. Gêmeos com
ascendente em gêmeos. Foco, meu filho, foco.
Não sei se você notou, na sua primeira carta, chamo-lhe de Tomaz, com Z.
Essa letra foi uma questão de intriga durante a gestação. Sua mãe e amigas eram
do time do S, suas avós, inclusive minha sogra, meus amigos e eu, do Z. Há um cartório
no subsolo da maternidade em Laranjeiras, assim que o deixei no quarto com sua
mãe, tive essa incumbência. Antes eu brincava que quem iria registrar seria eu
mesmo, então a mim cabia a decisão. Depois de 11h de trabalho de parto, nem
pestanejei: “Tomás com S, né?” E fechei a porta.
ps1: recomendo-lhe usar Tomaz em qualquer coisa que possa fazer com esse
gêmeos com ascendente em gêmeos.
ps2: o que saiu do poema Rimbaud e Rilke foi esse brega-Bandeira aqui:
to mais feliz
com tomás aprendi
to mais eu
to mais nós
to mais aqui
papai, mamãe,
vovô e vovós
saúdam o pequeno
com tomás renascemos
Beijos do seu pai que o ama desbragadamente,