Uma carta sempre pode falhar ao seu destino.
(Jaques Derrida)
Mas mesmo assim precisa ser escrita.
(eu mesmo)
Um dia passando de táxi na frente do Palácio da Alvorada vi no piso superior
direito uma sala de estar ampla e bonita com uma grande TV ligada e tive a
certeza de que a senhora estava lá. Já ia alta a madrugada e pude lhe ver sentada
numa poltrona violeta, vestida com um tailleur branco com detalhes pretos, pés
descalços com unhas bem feitas amparados no banquinho em frente, um tablet
desligado no colo e os olhos fixos na TV. A sala em meia luz. Fiz mais um
esforço para imaginar o que estaria na tela e, claramente, me veio o último
capítulo da segunda temporada de House of Cards, que seu colega Obama já tinha
visto antes de nós dois. Digo colega porque best friend está longe de ser após
Snowden e WikiLeaks.
A inescrupulosa escalada ao poder do Frank Underwood nos convida à
reflexão dos nossos próprios limites entre desejo, razão e ética, mas também
salpica na tela toda a sujeira por detrás do paletós, os financiadores de
campanha, os lobistas e todas as mais de 500 espécies de anelídeos sanguessugas
que se alimentam de milhões de eleitores-hemácias. Pois bem, nesse mesmo dia em
que lhe vi no Palácio, presidenta, havia votado “sim” no Plebiscito por uma
constituinte exclusiva, o embrião da reforma política. Sei que a senhora também
votou igual a mim e a 7.999.999 brasileiros.
Presidenta, eu lhe mando cartas desde 2011, sei que você as lê com
carinho, mesmo sem entender uns trechos, já foram mais de 15 correspondências.
Saiba que apesar do mensalão, de apertar a mão de Collor e Maluf, de denúncias diárias
do Globo, Folha, Estadão e Veja, votei na senhora no primeiro turno e assim o
farei no segundo, e sabe por quê? Porque em 44 anos de vida brasileira nunca
havia conversado com uma empregada doméstica na poltrona ao lado do avião,
nunca paguei tão caro a uma diarista e nunca, mais nunca mesmo, vi uma agente comunitária
de saúde estudando medicina em uma universidade pública, tendo ainda como colega
de turma a sua filha. Para a senhora ter ideia desse nunca, no meu tempo de faculdade
havia apenas 1 negro nas 12 turmas,do primeiro ao sexto ano. E era de filho de
diplomata.
E quer saber o que eu acho dos podres que eu mencionei lá em cima? Desde
o Partido Republicano Paulista, primeiro partido republicano fundado antes da proclamação,
sabe-se que para assumir o maior poder executivo do país precisa esquecer
qualquer rito religioso praticado na infância e fazer alianças com divinos, centro-divinos,
centrão, centro-demoníacos e demoníacos. Com os extremistas de ambos os lados,
seja de esquerda ou direita, seja de cima ou debaixo, não se mexe, nem se entra
em acordo, apesar de serem essenciais para se tensionar o tabuleiro do jogo
senão o dado pula.
Daí a existência do Collor, Sarney, Maluf e Renan, o que deixaria
novamente em coma um militante do PT que teve um acidente vascular hemorrágico
vendo o famoso debate Collor e Lula na Globo em 1989, e que acordou na primeira
década do século XXI e deu uma zapeada na TV. Claro, seria um choque comparável
a uma mulher que viu o beta HCG positivo na quinta semana e na sexta pariu. O
sujeito era de esquerda ou extrema esquerda e acordou como centro-esquerda ou centrão,
que é sinônimo de PMDB desde 1989, ou 1889, sei lá...
Sobre o mensalão, Presidenta, resumo-lhe este diálogo que escutei na
ante-sala do Congresso nos idos de 2004 ao lado de Eduardo Jorge, antes de ele
ser secretário de saúde dos demoníacos (DEM), quando lá estávamos balançando
faixas do movimento médico sindical contra o desmonte do CPMF:
- Não tem como a gente falar das mesadas! (cochichando) É assim desde
que o Congresso é Congresso.
- Última carta, ninguém tem outra ideia pra acabar com a reeleição.
Para mais informações sobre isso, especificamente sobre o envolvimento
do Joaquim Barbosa, aconselho-a reler minha última carta que lhe enviei em
fevereiro, especificamente o trecho sobre o fatídico dia em que o encontrei no
Metropolitan de Nova Iorque e lá, dentro do museu, o que a deusa Osíris me
revelou no Templo de Dendur. http://riocife.blogspot.com.br/2014/02/bom-dilma.html
Segundo o profeta satírico alemão, Brecht, que também era médico:
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.
Claro que Brecht está certo e, por isso, aqui no Rio votei no Tarcísio,
Chico e Freixo, claro que toda essa naturalidade do jogo político é um lixão
que produz várias estamiras esquizolúcidas, que nos enlouquece, nos confunde,
mas, em paralelo, vai-nos polindo a razão e trazendo a angústia da lucidez no
meio da rua de uma humanidade engarrafada. Entretanto, não se pode negar que o
eixo estruturante do desenvolvimento econômico adotado pelo PT nesses 12 anos
de inclusão social e de distribuição de renda, que culminou, segundo a ONU, com
a retirada do país do mapa da fome mundial, e com a agente comunitária de saúde
numa turma de medicina, não é absolutamente nada natural comparado com todo o
período republicano, monarquista e colonial brasileiro.
Em relação às denúncias do Globo, Folha, Estadão e Veja, presidenta, é
só ler um pouco a história da imprensa nesse país e entender que os Diários
Associados, o Correio da Manhã e o Diário de Notícias nas décadas de 40 e 50 e
o próprio Globo na década de 60 sempre foram contra qualquer governo que
ousasse uma mísera que seja distribuição de renda via políticas sociais, ou que
garantisse mais direitos trabalhistas, muito menos que propusesse debates mais
progressistas como reforma agrária, ou reforma política. Assim se deu com o
último governo de Getúlio, com o de JK e de Jango. É só lembrar que apenas um
jornal de alcance nacional foi contra o golpe militar, “A Última Hora”, de
Samuel Wainer, que eu sei que na época a senhora morria de vontade de assinar,
mas era muito centro-esquerda para uma VAR-Palmarense. Portanto, presidenta,
ter esse batalhão monopolista e quase monárquico produzindo diariamente
manchetes negativas quer no mínimo dizer que a senhora está no caminho certo.
Em contrapartida, os paradoxos não podem justificar os fins. Para além
de um partido que cresceu tanto, desconfigurou-se, e perdeu sua unidade dando
margem a aventureiros mercenários, eu não aguento mais essa insistência na
indústria automobilísitica e a redução eterna do IPI, mesmo sabendo que isso
sustentou a crise internacional.
Diversifique, pelo amor, o setor industrial, ou invente o impossível: “compre
seu carro e leve de graça uma rua, uma avenida ou um viaduto. Monte seu próprio
bairro.”
Da mesma forma, não mais suporto que as políticas de transferência de
renda sirvam majoritariamente para o jovem comprar moto e se acidentar, TV led
e se emburrecer, smartphone para entrar no Face, e diploma de facul privada que
se multiplica por geração espontânea. Produzimos a nova classe rolezinho-funk-ostentação,
que quando se descasca, falta o tutano. As 23 milhões de carteiras assinadas, a
amplidão do mercado interno, do consumo de massas, o aumento sustentado do
salário mínimo, que fez grande fatia da classe média lavar louça e passar um
pano no banheiro, precisa ser acompanhado de um investimento muito maior que o
do Templo de Salomão no salário e capacitação do professor público, do Infantil
à Pós-Graduação. O querer aprender com a vida nos tempos de zap zap e Face
precisa produzir um novo universo de criatividade e esforço didático para se
crescer, curtir, compartilhar, e crescer novamente.
Voltando ao meu solitário passeio noturno em torno do Palácio da
Alvorada, nós sabemos muito bem quem é o Underwood tupiniquim. Toda vez que
vejo o Never falando em acabar com a corrupção, inflação, e que vai fazer o
país crescer lembro do Frank sozinho no salão oval em pé por detrás da cadeira
presidencial se entupindo de orgulho e dando as duas rápidas batidas na mesa
com a mão direita. É bom colocar os pontos no U, como dizia meu bisavô alemão: compra
de votos para reeleição de FHC e o superfaturamento de trens e metrôs em São
Paulo são exemplos corrupção no PSDB, a inflação no governo FHC era maior que
todos os 12 anos do PT, e a estabilidade da moeda com o Plano Real em 1994 se
deu graças a um endividamento brutal da dívida interna, o que culminou com a
quebra do Brasil por três vezes, tendo-se como “solução” o maior OFF Brasil que
já se teve notícia com dezenas de privatizações a preço de paçoquita. O PSDB
materializou literalmente a canção “Aluga-se”, de 1980, do também profeta Raul
Seixas, que cantara a pedra: “É tudo free / Tem o Atlântico, tem vista pro mar
/ a Amazônia é o jardim do quintal”. O que
mais me entristece, presidenta, é a quantidade de gente estudada que embarca
nessa farsa com o único argumento de “mudar”, como se o Never representasse o
que há de mais progressista de projeto de sociedade para o futuro do país. Abre
a boca para falar de meritocracia, quando sua grande meritocracia foi ter
virado mórula, blástula, gástrula e por aí vai após o encontro das células
germinativas dos seus pais.
Para um eventual desastre, já organizei meus anti-depressivos e
benzodiazepínicos na farmacinha do banheiro, como um bom virginiano, e reservei
passagem de ida para Montevidéu, nossa Paris dos anos 20. A senhora poderia
finalmente realizar o desejo de, desculpa a intimidade, pegar o Mujica. Eu seria
o médico dessa nova família, e todo domingo dançaríamos um Candombe e enviaríamos
axés para Lula aguentar firme até 2018.
Mas, não! Definitivamente, never. Chacoalho a cuca com Marte passando em
trígono com meu Mercúrio em leão na casa 7, e aperto forte a guia de Iemanjá.
Rezo para que o Estado seja laico, graças aos homens.
Presidenta, segundo Bertoldo Brecha, “veeeenhaa!”. Contudo, venha
sabendo que, além do baixo crescimento, serão anos que o governo federal,
diante de um Congresso mais reacionário desde 64, se não tiver clareza de que
lado está sambando, vai descer até o chão.
É manter mais ainda a atitude multilateral na política externa, porque
se aliar à cadeia produtiva global é copiar o fracasso mexicano e voltar à
cartilha do FMI. É ter raça para baixar a Selic e investir na indústria
nacional com sustentabilidade energética, sem medo da inflação, e longe dessa aberração
de deixar o Banco Central “independente” nas mãos dos bancos privados. É fazer
mágica com os estados e municípios para elevar a qualidade da saúde e educação
sem privatizar. É desfivelar o cinto do Centrão e chegar mais perto da base e
dos movimentos sociais. É fazer com que eu não consiga mais pagar minha
diarista e passe o pano no chão do meu banheiro, é lotar um A330 de empregadas
domésticas e pedreiros rumo à Fernando de Noronha.
Mas qualquer cuidado é muito pouco, vi na TV agora mesmo a senhora
passando mal numa entrevista e dizendo que foi “pressão baixa”. Na verdade, foi
um piti, um faimizim, uma bilora. Receito-lhe sal grosso no bolso do taileur,
parar de assistir House of Cards, e ler todas as minhas cartas antigas para rir
um pouquinho. Muito importante: nunca fixar o olhar no riso sardônico do
adversário. Em vez de ele bater duas vezes a mão à mesa, por trás do riso ele
dá duas trincadas na mandíbula para consumar o ato final. Mentalize: Underwood
never.
Cordialmente,
Dr. Luiz