Uma carta sempre pode falhar ao seu destino.
(Jacques Derrida)
Mas mesmo assim precisa ser escrita.
(eu mesmo)
Bom dilma, presidenta!
Escrevo-lhe da sua, da minha, da nossa ciudad
marabijosa, onde no meio do ano o sol do meio-dia esquenta lightmente nossas
cabeçorras. 25 graus ao meio-dia. Sugiro à senhora adotar no seu
vocabulário esta expressão que aprendi aqui: "Já é!" Nosso inverno é um verão
stella artois.
Minha querida, fico muito feliz de estarmos juntos
nesta segunda década do 21th Century Terra. Acho que agora de fato começou o
milênio. Sabemos que, didaticamente, os historiadores contarão que a nova Era
começou com as Torres Gêmeas em 2001. Porém, aqui pra nós, sabemos que começou na
Tunísia, quem diria!, quando nossa querida WikiLeaks denunciou a cara de pau de um daqueles ditadores-avatares dos States. E
assim, Primavera Árabe, Occupy e a Copa das Manifestações. Digo outra, fico
também alegre de estar nesse barquinho após os 30. Se eu tivesse 15, 20, estaria perdido sem “atenção para a canção”. Depois de muita canção nos
meus tímpanos coroa, me sinto, obviamente, perdido, porém curtindo muito estar meio vertiginoso na minha própria casinha. Lembra Leminsky? “Distraídos,
venceremos!”.
Presidenta, tenho duas coisas para lhe contar hoje.
Uma, precisarei lhe escrever essas cartinhas em máquina de escrever e enviar para os correios, cartinhas que lhe mando desde 2011 pelo electronic-mail – fiquei
muito feliz em saber, como soube por fontes, que você as ler no alpendre da Alvorada numa cadeira de
balanço portuguesa (só não entendi o ‘portuguesa’). Segunda coisa, como a senhora sabe, como lhe
indicava no cabeçalho de um Bom Dilma antigo, sou “um médico de família de uma
OS perto de você” e preciso muito e mais e mais lhe contar o que acho dessa
transformação do facebook de médicos em ringue UFC. Pois , se fosse uma
discussão mais robusta, seria um clássico ringue de boxe inglês. Uma luta muito
mais elegante, não presidenta?
Por que máquina de escrever? Porque entrei ontem no
movimento cypherpunks, a luta armada de bytes, digo, terabytes. Por favor, leia
“Cypherpunks” do Julian Assange, editora Boitempo, aquela editora que a senhora
adorava. Assange é o verdadeiro superman IV em 3D, você já o conhece e
repito-lhe dizer que fiquei chateado de a senhora não o ter exilado no bairro
de Vila Isabel para que pudéssemos nos esbarrar no boteco levando nossos laptops.
Mudando o mundo num boteco de Vila Isabel, ouvindo Noel e falando inglês
macarrônico com Superman seria explode coração. Soube que o Snowden recebeu 3
propostas de asilo na América Latina. Confesse, presidenta, Vila Isabel?
Bom, enquanto isso, Patriota e mais 4 hermanos
chanceleres estão, espero eu, na vinícola Bouza nos arredores de Montevidéu,
discutindo como dar um cascudinho nos States. Diga ao Patriota que ele pode dar
um cascudo maior, Assange garante. Ele está tão feliz com o Equador e com tudo
que está rolando por aqui, que vem dizendo aos quatro ventos que “América
Latina is the Guy”. Eu e você concordamos. Agora, um aviso de amigo para você
e seus colegas hermanos: não contrate empresas de segurança virtual, todas estão
atreladas ao States, pois o software de criptografia é patenteado pelos
yankees. O que vocês precisam fazer é nos contratar: cypherpunks. Fazemos de
graça com um software livre que produzimos. Ademais, os States ou qualquer outra
nação ainda não crackeou a gente. Então, vem! Nunca pensei que eu pudesse
trabalhar para a senhora de graça, mas os o mundo gira, e rápido.
Por essas e outras, precisarei voltar à Olivetti. O
governo russo já está planejando também. As digitadoras, dores e barulhos voltarão. Necessitaremos de curso em larga escala: as teclas do laptop são
muito macias, precisaremos de calos nos dedos. Lembra Kill Bill quebrando a
madeira do caixão? Por aí.
Claro que serei banido do Facebook e Google, não terei
mais mastercard Smiles platinum. Viverei num mundo meio McFly em De volta para
o Futuro. Sem celular, cartão, facebook, porém com um ultrabook olivetti que só
daqui a algumas décadas será compartilhado nas redes sociais. Se vencermos, é claro. Em caso de derrota, essa jóia high tech vai ser vendida no shopping de São Conrado e traficada no Morro do Alemão pelo BOPE. Em contrapartida, por
enquanto, não poderei usar emails. Enfim, a batalha tá aí, presidenta, e eu me alistei.
Você iria adorar, não se precisa mais fazer aqueles treinamentos chatos de tiro
na deserta praia do Recreio.
Falando em praia, medicina também é a minha, em que
chego religiosamente em ponto durante a semana. Aprendi a ser pontual com o
Che, que disse uma vez: "pontualidade o muerte". Aqui no Rio
eu sofro, Che.
Serviço civil obrigatório para os egressos de
universidades públicas e privadas, no caso de alunos subsidiados
pelo governo público: palmas, palmas. Óbvio, o Brasil é um país capitalista do
BRICS, não tem como não exigir uma pequena ajuda depois de custear por baixo 30
mil reais ao ano/estudante de medicina. Quando entrei na faculdade há 8 anos eu
já achava isso lógico. Não dá para se formar depois de 6 anos em universidade
pública, fazer uma residência de dermato e abrir uma clínica de dermato
estética no Leblon. Isso é contra o Brasil. Agora, se você custeou sua
graduação, aí tudo bem, pode fazer o que der na cachola, tendo agora que queimá-la estudando ainda mais, pois as vagas precisam ser reguladas pelo
Estado, e vaga de dermato vai ter bem menos em relação às áreas básicas:
medicina de família e comunidade (mfc), clínica médica, cirurgia geral,
ginecologia/obstetrícia e pediatria. Quem gostou disso foi o medcurso... presidenta, medcurso? Seria mais um toma lá me dá cá do Partido Republicano?
Agora o meu “não curti, não curti”: os 2 anos do segundo
ciclo, pós 6 anos, não pode hoje em dia ser uma coisa diferente de residência
médica obrigatória. Agora, se será em mfc, ou se será metade das vagas em mfc, e a outra metade nas áreas básicas, é um conta para o governo fazer considerando
a população brasileira. Presidenta, não dá para dizer: “calma, calma, os recém formados
e estrangeiros não vão operar, fazer neurocirurgia, vão para a atenção básica e
emergência/urgência, SAMU”. Para mim, não tem especialidade médica mais fácil
de se fazer nas coxas e mais difícil de se fazer bem feito como medicina de família e
comunidade. São inúmeras habilidades e tecnologias que não são facilmente
medidas no dia-a-dia, mas que no fechamento da conta pode dar um rombo no já
precarizado SUS se for feita de má qualidade. Em relação a
emergência/urgência/samu a mesma coisa, principalmente levando em conta que a
maioria das ‘emergências’ são pronto-atendimentos (PA), e PA para nós, médicos
de família e comunidade, já fazemos diariamente no posto. Não se esqueça do
CTI/UTI, que junto à emergência e atenção primária à saúde (aps) são os 3 cenários em que a maioria dos
médicos formados apenas com a graduação no bolso vão atuar Brasil afora.
País com saúde forte é país com aps robusta, poderosa, malhada, sin perder la ternura. Veja Canadá,
Inglaterra e Cuba. Eu sei que a senhora já sabe disso, que Lula e FHC idem. Todos
vocês sabem que investir árduo em APS é mais vantajoso economicamente e
sanitariamente para o país, mais vantajoso para satisfação dos cidadãos,
portanto, me diga, para que o retrocesso nesse ponto crucial: alta qualidade da aps?
Esses 2 anos do segundo ciclo precisa ser uma residência
médica, não dá para deixar frouxo: “a universidade que vai decidir” etc. Não:
residência. A gente já sairia da graduação com uma especialização e depois
correria atrás dos sonhos de cada um, já tendo uma boa bagagem com uma boa residência
federal de boa qualidade. E digo mais: se fosse de boa qualidade aumentaria
muito a chance de fixar os médicos como mfc.
Sobre os estrangeiros? Portugal já tem isso, possui um
convênio com Honduras, Costa Rica e Cuba. Recebe sem “rrevalida” para áreas de
vazio assistencial. Juridicamente, não daria para os estrangeiros agora fazer o
revalida, pois a prova é ruim, e caso faça medcurso e passe, ele poderia montar
uma clínica de dermato estética no Leblon (to malhando a dermato, perdão,
colegas, saibam que gosto muito de dermato sanitária. Ah, sobre o Leblon, a livraria
Argumento é fantástica).
Bom, presidenta, acho que o Brasil precisará gastar
uma grana a mais para supervisionar de perto os gringos. Mesmo em caso de terem
uma boa capacidade técnica e um bom entendimento de como se funciona o SUS e o
Brasil, a tal da língua é bastante traidora no começo. Acho que os cubanos, que
fazem o curso tradicional de Cuba, a melhor safra para essa missão. A ELAN,
escola para a América Latina ainda tem muitas fissuras e o ensino é bem mais
fraco. Fui a Cuba 2 vezes, eu sei que a senhora foi 108, mas já deu para
perceber isso: os estudantes de medicina cubanos são mais cabeçudos. Se brincar, a formação é melhor que a nossa.
Para finalizar a minha extensa epístola (tô animado
hoje), quero lhe dizer que eu só acredito em aps forte com equipe
multidisciplinar. Médico sozinho não faz verão, longe disso, nem um outono
capenga. Então troque o +médicos para o +saúde e abra vagas para as outras
profissões, também com residências e especializações de alta qualidade. Médico
sem qualidade na aps revigora a tese de que o médico potencialmente pode fazer
mal à saúde com iatrogenias clínicas, sociais e culturais. Recomendo Ivan
Illich: “Limites para a medicina”, editora utopia, a qual a senhora conhece
muito bem.
Sobre o ringue UFC entre médicos no facebook: Universidades
de medicina, por favor, cometam uma redução de danos! pelo menos do UFC para o
boxe: cobrem um pouquinho que seja de filosofia, sociologia e história para todos nós.
Presidenta, que tal aulas básicas de economia nos cursos de medicina ao se aposentar como presidenta? Uma coisa eu lhe digo, para a senhora
passar no concurso com uma banca de médicos, só vindo comigo pro cypherpunks.
Venha, você vai gostar.
Carinhosamente,
Dr. Luiz