INTRODUÇÃO
A partir daí, como as informações contidas nos textos eram completamente novas e reveladores para os pós-graduandos que cursaram a disciplina, decidi me imbuir do desafio de montar um texto acessível para leigos e não-pesquisadores.
Uma das temáticas centrais dos textos trabalhados é a relação entre a ciência e a indústria. Existem realmente interesses “extra-científicos” na produção do conhecimento? Quais estratégias são necessárias para sustentar um produto no mercado apesar do seu reconhecido malefício para a saúde humana e o meio ambiente?
Apesar de os textos tratarem da relação da ciência com vários tipos de indústrias (mineradoras, petrolíferas, de celulose, farmacêuticas, de computação etc), focarei na indústria do tabaco, muito pela facilidade de se contar uma história, a qual em muitos aspectos se assemelha a um “thriller”.
Dividirei o texto em duas partes. Na primeira, tentarei discutir temas gerais para iniciar o leitor na discussão. A segunda será reservada ao referido “thriller” sobre ciência (e cientistas), mídia, liberdade e como os cigarros se mantiveram acesos até os dias de hoje.
Dedico este texto aos corajosos autores, muitos provenientes dessas indústrias, os quais decidiram revelar informações tão importantes para nós, consumidores.
Informações que reforçam nossa desconfiança em sermos mais “marionetes” do que imaginávamos. Obrigado por me mostrarem que minhas “teorias da conspiração” não são tão fantasiosas assim.
As fontes primárias a que esses autores se reportaram são da Legacy Tobacco Documents Library, onde estão mais de 13 milhões de documentos das indústrias de tabaco sobre estratégias de venda, marketing e campanhas. E que estão disponibilizadas no site da Universidade da Califórnia: http://legacy.library.ucsf.edu/.
Apesar de tão extensa documentação, quase não há publicações a respeito no Brasil. Tento estimular, portanto, a tentativa de plantar uma semente da curiosidade em pesquisadores e jornalistas que, por acaso, tenham o interesse de descobrir como essas indústrias operavam as estratégias por aqui e na América do Sul.
Antes de começar, peço consideração pelos possíveis deslizes de tradução. Toda a literatura pesquisada ainda está no inglês, espero que por pouco tempo.
PARTE 1
Maçãs, eurekas e outros insights
Que é inegável o reconhecimento que a ciência atingiu nos dias de hoje todos sabemos, que a supremacia de uma nação está diretamente proporcional à importância (leia-se investimentos) que é destinada à produção do conhecimento idem. No entanto, poucos sabem (ou se lembram) que a maçã caiu na cabeça de Newton há menos de 400 anos.
Refiro-me à ciência moderna e à difícil ruptura com os modelos anteriores de explicação do mundo. Repostas como “porque Deus quer”, ou “porque é assim” se tornaram evasivas, o próprio medo do desconhecido teve que ser desafiado a duras penas. De uma vez por todas, o ser humano, agarrado à sua própria razão, despegava-se do temor à ira divina.
No entanto, é bom lembrar que a figura da maçã como pecado de desafio a Deus no Jardim do Éden não se aplicava diretamente a Newton, muito menos a Descartes, que se esforçou por toda a vida a provar a existência de Deus.
De forma paradoxal, os responsáveis pelo eixo de sustentação da ciência moderna eram devotos fervorosos. O tiro saiu pela culatra, a ciência precisou se desgarrar da religião para se legitimar como a quintessência da racionalidade.
Não foi fácil. Se hoje são banais os aviões, celulares, antibióticos e as viagens aeroespaciais, não custa lembrar quanta dificuldade foi para Galileu, Copérnico e Giordano Bruno sustentarem suas convicções baseadas na ciência.
Todas essas transformações na natureza que vivenciamos no dia-a-dia foram frutos desse tipo de ciência, ou melhor, da ciência como hoje conhecemos. Porque justamente a intervenção na natureza, transformando-a radicalmente, foi o que diferenciou esta ciência dos antigos modelos de produção do conhecimento. Em contrapartida, especialmente nesse ponto reside o preço que pagamos desse “progresso”.
Segundo Boaventura de Souza Santos (2006, p 138), “(...) paradoxalmente, [sobre a ciência moderna] para maximizar a sua capacidade de transformar o mundo, pretendeu-se imune às transformações do mundo. (...) a ciência é feita no mundo, mas não é feita de mundo”.
O que o sociólogo português enfatiza é que a ciência possui mais poder de transformar o mundo quanto maior é a sua independência em relação a ele. A ciência possui suas próprias regras, independente de isso ser socialmente construído ou não.
Essa visão denuncia uma questão crucial para a crítica a essa forma, aparentemente magnífica e deslumbrante da produção científica: a produção do conhecimento de 400 anos para cá nem sempre privilegia a humanidade e quase nunca é compartilhada entre os seres humanos.
A ciência é fantástica para quem a detém, porém nem mesmo os privilegiados ficam imunes, por exemplo, às consequências negativas e irresponsáveis que, em nome da ciência (não necessariamente da humanidade), a natureza vem sofrendo e respondendo (muito bem explicado ironicamente pela teoria de ação e reação de Newton) através do aquecimento global e desequilíbrios dos fenômenos naturais que se avolumam a cada ano.
Além da resposta da natureza em si, a ciência moderna possibilitou outros excessos e irresponsabilidades humanas também em nome do progresso, como a indústria bélica, a engenharia nuclear e as ciências jurídicas que sustentaram a escravidão, os regimes fascistas, incluindo a utilização de seres humanos como cobaias nos estudos sobre vírus e bactérias.
Principalmente a partir da Revolução Industrial e do avanço do capitalismo, a produção do conhecimento científico vem obedecendo às regras do mercado, e ao mesmo tempo sustentando cientificamente o próprio mercado. Uma auto-regulação que privilegia ainda mais a concentração das tecnologias e conhecimentos, o não-compartilhamento e uma construção de uma ciência desatrelada das demandas sociais.
Todos esses exemplos que expõem o outro lado da moeda muitas vezes não são suficientes para arranhar a impávida figura do cientista vestido de branco, asséptico, por trás de tubos de ensaios. O que acontece é que há muito pouco tempo, a hipótese de que existem outras motivações subjacentes (e muitas vezes determinantes) para além do puro interesse intelectual na produção de pesquisas vem sendo investigada e, como era de se esperar, confirmada.
Claro que poucos são ingênuos o suficiente para não desconfiar na dificuldade (diria, impossibilidade) do cientista em ser totalmente imparcial nas suas pesquisas. Claro que parte dos seus valores e sua forma de ser e pensar o mundo vai estar contida na sua produção de alguma maneira. A novidade é que, devido ao avanço do capitalismo e a consequente transformação da ciência e do conhecimento em mercadoria, “o que” e “como” se pesquisar estão sendo determinados em um único $entido.
Se já desconfiávamos que nem a maçã de Newton, nem o eureka! de Arquimedes eram puros e românticos, há pouco começamos a perceber que o insight científico já pode nascer com preço e marca registrada.
Conexões transepistêmicas e comunidades de especialistas
Muito recentemente os cientistas sociais (sociólogos e antropólogos) ultrapassaram a porta do laboratório do cientista. O que quero dizer é que só no século XX estudos sociais sobre a ciência começaram a aparecer. Até então, prevalecia a idéia de que o único fator determinante de uma pesquisa, como já se foi enfatizado, era o interesse teórico-intelectual do cientista.
Para Knorr-Cetina (1982), pesquisadora seminal nessa área, existiria sim semelhanças entre a vida social e a vida científica. Apesar de os cientistas sociais não dominarem um determinado tipo de ciência, como a biofísica por exemplo, não quer dizer que não se poderia tentar compreender outros determinantes que poderiam estar influenciando no resultado das pesquisas biofísicas para além da biologia e da física.
O fato de as comunidades científicas serem socialmente construídas corrobora para o entendimento de que, apesar da necessária impessoalidade do cientista no decorrer de suas pesquisas, seus valores e interesses acabam “vazando” para o resultado das mesmas. O mesmo se aplica para os valores e interesses das comunidades científicas no qual está inserido, as quais também se relacionam com outros agrupamentos sociais não necessariamente de cientistas.
Essas conexões, chamadas pela Knorr-Cetina de transepistêmicas seriam o caminho chave para se abrir a “caixa-preta” dos estudos sociais sobre a ciência: a produção do conhecimento.
Tendo-se como precursor Thomas Kuhn, surge um novo campo de estudos sobre a ciência, o Science Studies (no Brasil, “Estudos sociais sobre a ciência”), que tenta focar na produção dos cientistas, apesar de também tecer associações entre o modelo de se fazer ciência e a economia de mercado. Science Studies utiliza elementos da História da Ciência, Sociologia da Ciência e Filosofia da Ciência.
Além da Knorr-Cetina, despontam nesse campo: Harry Collins, Steve Shapin, Andrew Pickering e Bruno Latour.
Em relação à implicações entre o processo de se fazer ciência e a economia de mercado, por exemplo, torna-se importante notar o quanto que o raciocínio científico dentro de um laboratório está imbricado com o raciocínio econômico. Segundo Knorr-Cetina, palavras como risco, custos e vendas estão no cotidiano dos cientistas. Além do mais outros exemplos tornam mais evidente essa relação:
- as tomadas de decisão são realizadas a partir das probabilidades de “sucesso” dos resultados esperados ao fim da pesquisa.
- muitos objetos científicos, por não utilizarem tecnologia de ponta (ou da moda), são descartados e rotulados como “simples” pela comunidade científica.
- outros objetos científicos são inventados graças à fascinação dos cientistas por uma tecnologia rara e dispendiosa, ou seja, muitas vezes o interesse do pesquisador não está no que lhe gera dúvidas e questionamentos, aliás, isso pode ser apenas um detalhe.
- o esforço em publicar pesquisas em determinadas revistas que não possuem familiaridade com o que está sendo pesquisado apenas pelo fato de serem revistas renomadas.
- o que é pesquisado não é construído socialmente (ex: a sociedade não seleciona e prioriza os temas que precisam ser pesquisados), isso ocorre através das demandas das agências financiadoras que negociam qual é o problema e como pode ser selecionado para a produção de pesquisas.
Enfim, todo esse interesse por oportunidade, resultado, riscos e produtividade numa linha de pesquisa se remete à ideia de mercado, onde a mercadoria é a ciência e, por extensão, o próprio cientista.
É muito importante nessa discussão, porém, não se perder em possíveis absolutismos. Está claro que a produção do conhecimento não se dá apenas por interesses intelectuais, porém da mesma forma não suporta uma única causalidade econômica. Um conjunto de fatores estará sempre determinando o resultado da ciência. O desafio está em identificar quando um determinado estudo está pendendo para um lado, digamos, “menos científico”.
O conceito de conexões transepistêmicas, portanto, descarta definitivamente a possibilidade de se achar que a noção de comunidade de especialistas é apenas o único contexto relevante para se estudar a produção do conhecimento científico. E isso não foi pouco.
No entanto, Bruno Latour declara que passados os anos, em outras palavras, “o feitiço está se virando contra o feiticeiro”:
"Programas inteiros de Ph.D. ainda se esforçam para se certificarem de que os jovens estão aprendendo a difícil maneira como os fatos são construídos, que não existe tanta coisa “natural”, sem mediações, que não existe um acesso sem vieses à verdade, que somos prisioneiros da linguagem, que sempre falamos de um particular ponto de vista etc. Enquanto isso, extremistas perigosos estão usando do mesmo argumento de construção social para destruir fortes evidências que poderiam salvar nossas vidas." (Latour, 2004, p. 227)
Ele se refere às estratégias das indústrias em minar o conhecimento científico com fortes evidências sobre o aquecimento global, que é fruto, entre outros, do excesso de consumo de bens e da utilização de matérias primas não renováveis, como carvão e petróleo. E mais: que essa estratégia está se pautando, deformadamente, nos princípios do próprio Science Studies. Latour continua:
"Estava eu errado em participar na invenção deste campo conhecido como Science Studies? É o bastante dizer que nós não queríamos dizer o que dissemos? Por que a língua queima ao dizer que o aquecimento global é um fato mesmo você queira ou não? Por que eu não posso dizer para o bem da humanidade que o argumento já está fechado?" (Latour, 2004, p.227)
Certamente Latour ficaria estupefato com a deformação dos valores da ciência ministrados pela indústria do tabaco no decorrer do século XX.
PARTE 2
Agora chegou a hora do “thriller”. Contarei apenas uma das tantas histórias que tivemos acesso, infelizmente deixarei para depois a história sobre a estratégia para atingir o sexo feminino e a juventude. Aqui focarei na disputa sobre os malefícios do fumo passivo. Comprem suas pipocas e boa leitura.
O fumo passivo tem voz ativa
Personagens
Enviromental Protection Agency (EPA, agência americana de regulação e proteção do meio ambiente. Possui financiamento de pesquisas acadêmicas e agências federais, como a FDA e o National Institute of Health. Tem um bom coração, defende com coragem o meio-ambiente, mas possui um orçamento ridículo perante os seus arqui-rivais)
Tobacco Institute (TI, órgão de produção científica e planejamento de marketing das indústrias de tabaco. Riquíssimo, com amplo poder sobre as mídias e financiador de muitos institutos de pesquisa)
The Advancement of Sound Science Coalition (TASSC, uma força conjunta das indústrias de tabaco formada para combater na mídia de grande circulação, através de matérias e artigos, os “disparates” da ciência que não atinge seus objetivos)
Freedom Organization for the Right to Enjoy Smoking Tobacco (FOREST, ONG britânica que luta pelo direito à liberdade de fumar. É patrocinada pela British Tobacco Advisory Council, BTAC, órgão que reúne as indústrias de tabaco da Grã-Bretanha).
Em 1986, o Ministério da Saúde americano declara que o fumo passivo pode causar câncer em não-fumantes sadios. Até então quase todos os americanos sabiam que fumar poderia levar ao câncer, mas as indústrias estavam conseguindo sustentar suas vendas através de campanhas massivas e pesquisas falsas para incutir a dúvida nos consumidores e fazê-los desistirem de tomar partido para qualquer um dos lados. E com que finalidade? Os consumidores precisavam continuar como estavam: fumando.
A partir dessa nova e devastadora revelação, as indústrias de tabaco partiram para a ofensiva temendo as proibições públicas de fumar em ambientes fechados, o que posteriormente haveria de se tornar realidade.
De agora em diante, não apenas os dados das grandes pesquisas que atestavam os malefícios do fumo passivo eram questionados e refutados em mirabolantes estudos inventados, mas também toda a ciência que fosse produzida no sentido de atrapalhar o funcionamento da indústria seria chamada de bad science, ou junk science - “ciência porcaria”.
Um estudo de 1981 dirigido por Takeshi Hirayama, epidemiologista chefe do Instituto Nacional de Pesquisas em Câncer em Tóquio, serviu como ponto final na possível dúvida que se restava sobre os efeitos do fumo passivo. Após 14 anos de pesquisa acompanhando cerca de 540 mulheres, foi constatado que esposas de fumantes morriam mais de câncer de pulmão que esposas de não-fumantes.
Diante de tamanha evidência, o Tobacco Institute (TI) contratou vários consultores na tentativa de minar o estudo de Hirayama, inclusive um renomado bioestatístico da época, Nathan Mantel, que produziu um trabalho pelo qual demonstrava haver um “sério erro” de estatística. O poderoso TI também comprou manchetes dos jornais de grande circulação para lançar mais uma vez a dúvida. Estampavam nos grandes jornais:
“Cientistas disputam achados de risco para câncer em não-fumantes”
“Nova pesquisa contradiz sobre os riscos para os não-fumantes”
Apesar dos esforços, dessa vez o TI não saiu na vantagem, já em 1984, 3 anos após o estudo do japonês, 37 estados americanos já haviam sancionado restrições sobre o fumo em lugar público. No entanto, a partir de 1986, quando se deu o endurecimento das políticas públicas via Ministério da Saúde, o TI reforçou suas armas numa campanha nunca antes vista. Eis algumas estratégias utilizadas:
- associar a restrição ao fumo à discriminação e ao tolhimento da liberdade individual;
- criação de firmas de advogados para servirem de disfarce jurídico na contratação de cientistas para produzirem conhecimento e pesquisas contra o anti-tabagismo;
- produção de novas categorias nosológicas para confundir com as doenças já relacionadas ao fumo passivo;
-patrocínio de campanhas no cinema. Contrato de U$ 500,000 com Sylvester Stallone para aparecer fumando em 5 filmes, no intuito de associar o cigarro ao poder e à força do “Rambo”.
-contratação pela Philip Morris de uma renomada empresa de publicidade, a APCO Associates, para servir de base para as estratégias de marketing e relacionamento com a mídia.
No final das contas, foram gastos no total cerca de 16 milhões de dólares para sustentar a controvérsia de um fato dado como claramente evidente.
Em 1992, a corajosa Enviromental Protection Agency (EPA) lançou um relatório: “Efeitos do fumo passivo na saúde do sistema respiratório”. A revelação em números ficava mais assombrosa: o fumo passivo estava relacionado com 3000 casos de câncer de pulmão por ano. Como se não bastasse, também no período de um ano a exposição ao fumo atrelava-se a 150 mil a 300 mil casos de bronquite e pneumonia em crianças. 200 mil a um milhão de crianças sofriam agravamento da asma. Isso sem contar o aumento de casos novos de crianças asmáticas expostas ao fumo passivo.
Evidências, muitas evidências em estudos epidemiológicos. E foi justamente a partir daí que a indústria de tabaco focou a mira: a epidemiologia não é uma ciência exata.
Dois sujeitos, ambos funcionários de indústrias de tabaco, Fred Seitz e Fred Singer foram cruciais para essa afronta no cerne do “problema”: eles defendiam que a “melhor evidência científica”, relatada nos grandes estudos epidemiológicos, pode sofrer fortes vieses devido a não atingir um padrão de pesquisa ideal.
Traduzindo: o acompanhamento das pessoas, por exemplo, expostas ao fumo passivo não se dava em gaiolas, controlando-se todas as funções 24h/dia, 7 dias na semana. Pois só assim, segundo eles, poderia se garantir que o possível câncer de pulmão, por exemplo, estaria só e diretamente relacionado à fumaça do tabaco, e não a qualquer outro fator cancerígeno.
Mas a epidemiologia clínica e a medicina, visto que os sujeitos envolvidos são seres humanos, costuma lidar (ou deveria) com a palavra ética, e por essa “limitação” a chave para esses tipos de pesquisa chama-se probabilidade. Tanto que, em casos nos quais por exemplo o remédio pesquisado já atingiu boa evidência de benefício, o grupo que estava usando placebo é interrompido, ou seja, muitas vezes as pesquisas não vão até o “fim”, já que isso poderia gerar mortes e outros malefícios.
Mas isso parecia não ser importante, uma manchete escrita por eles nessa época declarava suas estratégias: “Junk Science na EPA”, reivindicando que a EPA estava tomando “posições extremas não baseadas pela ciência” (in Oreskes N., Conway E. p 143-144), posto que “não poderiam controlar outros fatores... como a dieta, poluição, genética, doenças pulmonares anteriores etc”.
Da mesma forma, alertavam que o fato de não estarem considerando outros fatores como chumbo, asbestos, chuva ácida e aquecimento global seria uma perseguição, sem bases científicas, à indústria do tabaco. No entanto, a EPA nunca negou que esses outros fatores não poderiam causar malefício, apenas que a fumaça do tabaco era mais um fator cancerígeno.
Fred Singer, aproveitando o ataque, escreveu um livro de bolso Bad Science: a resource book, no qual alertava à população do quão perigoso estava sendo a manipulação das agências do governo para prevalecer os interesses da política, e o quanto de déficit econômico o Estado poderia sofrer ao se basear nas pesquisas e regulações dessas agências.
À propósito, regulação era uma tema chave para ser combatido, pois a liberdade do indivíduo (principalmente o norte-americano) precisava ser preservada. O lema era: “protegendo o direito de fumar, nós estamos protegendo a liberdade”.
Apesar de toda essa ofensiva, por “detrás da fumaça” se deixava transparecer que o ataque aberto à EPA, e não apenas as estratégias anteriores de produzir estudos falsos para gerar dúvidas, sugeria um certo enfraquecimento, demonstrado nessa “falta de compostura”. As coisas para a indústria não iam tão bem assim. Pelo menos aparentemente.
Essa “má fase” transparece por exemplo num memorando entre diretores de comunicação, de Victor Han para Ellen Merlo, da gigante Philip Morris:
“Na falta de um poderoso empenho para expor a fraqueza científica no caso EPA, na falta de um esforço para construir uma dúvida considerada razoável... caso isso não aconteça, virtualmente todos os outros esforços terão eficácia reduzida”. (Oreskes; Conway, p 149)
Esse mesmo diretor de comunicação, Victor Han, entendia que o esforço deveria ser no sentido de construir um “enorme mosaico” que pudesse reunir todos os inimigos da EPA de uma só vez.
Steven J. Milloy, com passado amplo de serviços prestados a empresas que faziam campanhas para minar as evidências de malefícios do fumo passivo, foi um dos cabeças desse mosaico pensado por Victor Han. Mosaico este que se chamaria TASSC (The Advancement of Sound Science Coalition), lançada pela APCO, aquela mesma firma de fachada criada pela Philip Morris anos atrás.
A TASSC, através de ligação com jornais, televisão e rádio, tornou-se uma poderosa ferramenta para a indústria do tabaco, pois chegava aproximadamente ao alcance de 3 milhões de pessoas. Formada por produtores de notícias e de opinião de jornais, tinha como pré-condição que o conteúdo produzido tivesse o poder de minar qualquer pesquisa ou notícia que desafiasse os interesses das indústrias do tabaco.
Os ataques não pararam. As acusações de bad science e junk science, muito menos.
Isso pode ser visto logo após a extensa revisão de pares realizada nos estudos da EPA sobre fumo passivo, cujos resultados já foram divulgados na p. 10. Umas das queixas fundamentais era a respeito da baixa exposição, em concentrações químicas, sofrida pelos fumantes passivos. Parece ser óbvio (mas não para a TASSC) que se o cigarro para quem fuma e inala grande volume de substâncias cancerígenas causa doenças, as mesmas substâncias, mesmo inaladas em menor concentração bem não irão fazer.
Entretanto, apesar da unanimidade dos revisores do estudo da EPA terem concordado que o fumaça do cigarro, mesmo para quem não fuma, é carcinogênica, a TASSC persistia na campanha de desinformação e produção de dúvidas.
A EPA produziu textos em sites para tentar esclarecer a população sobre a investida das empresas de publicidade das indústrias de tabaco. Porém, qual era a força de um website perante uma máquina milionária de produção de notícias e artigos em jornais e TV de grande circulação? Para se desmentir uma matéria da TASSC, por exemplo, no The Washington Post, quantos artigos no site seriam necessários?
Um novo argumento que a indústria de tabaco lançava mão estava relacionado à questão do risco. Viver é perigoso desde que nossa espécie começou a habitar o planeta: predadores, desastres naturais, emissões naturais de radioatividade, acidentes em geral. A questão era introduzir o cigarro como mais um risco “natural” pelo qual os seres humanos, vivendo essa vida tão cheia de riscos, poderia sofrer. Mas aí pousava o sofisma, o cigarro estava longe de ser natural. Assim como dirigir bêbado, ou fazer sexo sem proteção, o ônus não recairia apenas em cima da pessoa que escolheu se arriscar.
O fato é que, através de todos esses esforços em produzir controvérsia na mídia, desde o estudo de Takayama em 1981, em 1995, as ações da Philip Morris na bolsa de valores Dow Jones foram as mais inabaláveis. Apesar de toda a regulação anti-tabagista, em todos esses anos, as indústrias de tabaco nunca haviam sofrido um ataque direto.
E continuaram os “esforços” para manutenção dos lucros. Agora, mais do que nunca, a regulação realizada pelo Estado era parte de uma “ampla estratégia ideológica fundamentada pelo socialismo”. Quem estava dizendo isso eram os britânicos da Freedom Organization for the Right to Enjoy Smoking Tobacco (FOREST). Segundo Oreskes e Conway (p. 162), “o fudamentalismo do livre mercado”.
A FOREST lutava pela “liberdade” de se fumar em hotéis, pubs, avião; lutava também contra a elevação dos impostos que taxavam o tabaco. Combatiam também a ciência “socialista” que privilegiava as ações restritivas do Estado. Em 1994, lançaram o relatório: “Through the Smokescreen of Science: The Dangers of Politically Corrupted Science for Democratic Public Policy”. Por detrás da “liberdade” e da “democracia”, estavam a defesa não explícita do neoliberalismo, do livre mercado sem regulações.
Para esse relatório o prefácio foi destinado a Lord Harris, economista chave para a “Era Thatcher”. Ele acusava as agências federais de estarem realizando uma seleção sistemática e, até mesmo, proibindo a publicação de evidências. “A ação paternalista do Estado”, que “há uma pequena probabilidade que no final estejamos mais saudáveis, porém menos livres”, trechos do seu prefácio.
A defesa do cigarro parecia ultrapassar a mera preservação dos lucros das indústrias, também servia como defesa ao Socialismo Soviético. Importante lembrar que todos esses cientistas e administradores dos governos Nixon, Reagan e Thatcher trabalhavam na disputa ideológica bipolarizada da Guerra Fria.
Diante disso, todos os malefícios decorrentes do avanço do capitalismo (e do “progresso”), como: chuva ácida, camada de ozônio, pesticidas, aquecimento global, energia nuclear, radiação eletromagnética, tabagismo, alimentação gordurosa etc, devidamente demonstradas pela ciência, precisavam ser atacados. Era uma ciência que não prestava para o livre mercado, para a liberdade individual e a democracia.
Não por acaso os mesmos cientistas, publicitários e executivos que haviam questionado a chuva ácida, duvidado do buraco na camada de ozônio e defendido o tabagismo estavam atacando as evidências científicas do aquecimento global. Por que será? Oreskes e Conway lembram o filósofo Isaiah Berlin: “liberdade para os lobos significa morte para os cordeiros”.
Enfim
Hoje em dia, quase 50 anos depois do primeiro grande estudo correlacionando tabaco com problemas de saúde (que remonta de 1964), apesar das restrições em grande parte do mundo, muitos jovens ainda iniciam sua “carreira tabágica”, achando que ainda isso simboliza um ato de rebeldia e liberdade. Recordo-me do nome do cigarro que meu pai devorava 2 a 3 maços por dia: “Free”.
Porém, para muitos outros jovens (talvez a maioria), fumar virou “caretice”, ou mesmo coisa fora de moda. Seria o começo do fim para as indústrias de tabaco? Será que ainda veremos esses executivos no banco dos réus em tribunais norte-americanos, ou até mesmo internacionais?
Talvez, mas o fato é que eles ainda estão por aí, seus capitais provavelmente não se perderam, apenas se transformaram. Fico-me perguntando se as embrionárias evidências relacionando excesso de uso de aparelhos de celular e distúrbios cerebrais, ou, para não parecer ficção científica, ou teoria da conspiração (apesar de não ter mais receio de conspirar!), a questão do aquecimento global não seriam futuros exemplos de um thriller sobre os lobos...
Livres, poderosos, uivando sob a lua cheia.
Bibliografia
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Michaelis D. Doubt is their product: how industry's assault on science threatens your health. Oxford, New York: Oxford University Press, 2008
Oreskes N.; Conway, E.M. Merchants of doubt: how a handful of scientists obscured the truth os issues from tobacco smoke to global warming. New York: Bloomsbury Press, 2010.
Potter W. Deadly spin: an insurance company insider speaks out on how corporate PR is killing health care and deceiving americans. New York: Bloomsbury Press, 2010
Santos B.S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2a- edição, 2006.
Rampton S & Stauber R. Trust us, we're experts: how industries manipulates science and gambles with your future. New York: Penguin Putnam, 2001