Uma amiga veio me contar que foi à praia de Boa Viagem pela primeira vez. Não pude me conter em derramar na rede o que sinto de saudade e crueldade diante desse mar de assombro onde me batizei.
Abriram-me as portas com uma festinha na extinta maternidade do Derby – meu pai chegou a pagar hospedagem no quarto da enfermaria ao lado, onde eu mamava na mamãe, com a finalidade de saborear com sua gang o “xixi do neném”. Útero-loca-quentinha deixado pra trás, me levaram para o Edf. Monte Carlo, rua dos Navegantes, Boa Viagem, bairro onde me hospedei até concluir as faculdades mentais de medicina aos 27.
Primeiro fui doutor de amostramento em mergulhação – uma foto clássica na década de 80 evidencia um pequeno ser alienígena paramentado com roupa de neoprene, faca de caçador submarino acoplada à batata da perna esquerda, e relógio medidor de profundidades abissais em pulso direito prestes a adentrar no mar defronte ao velho e bom Acaiaca. A pixação “OS SURFISTAS” na fachada desse prédio iria me servir, anos mais tardes, como sentido e bandeira do movimento de mar em que fui fã de carteirinha com foto.
Sol, chuva, Natal, São João, nada me detinha na saga de calcular na seção de “tábuas da maré” do Diário de Pernambuco as horas em que eu deveria, com meu primo-irmão Lula, me aventurar nos swells da Pipeline recifense. Nas férias do Santa Maria comparecíamos na religiosidade da parafina em dois horários no mesmo dia: no mar seco inchando treinávamos longe do crowd as marolinhas para pegarmos, digamos, estofo surfístico; à tarde ou noite nos aventurávamos nos cachalotes. Sarrabulhos, gritos desesperados dos mais experientes “Aê, aê, aê...” eram corriqueiros nessas empreitadas hang loose em que sonhávamos na materialização das imagens Fluir do Tom Carrol, Tom Curren e Kely Slater, heróis genuínos do nosso movimento sebastianístico havaiano.
Quando Hugo Esteves, do NE TV 2ª- edição, anunciou o primeiro ataque do Tigre, meu pai, que assistia comigo ao noticiário, deu-me um tapa na perna e uma mordida no beiço: nunca mais, viu, caboclo! Daí em diante, Surf no Havaí e Caçadores de Aventuras me passavam despercebidos nas prateleiras da Videosom, soluços de maresia nessa época me eram frequentes.
Curei a primeira ressaca amorosa nas areias da Boa Viagem, onde me detive por longos minutos a meditar raiva e lágrimas até, num impulso passional, arremessar mar adentro um objeto sobre o qual havia projetado mau presságio e condecorado causador simbólico de todo o sofrimento da partilha: uma caveira em miniatura que havia adquirido no Piratas do Caribe na Disney de Orlando anos atrás. Em matéria de amor, essas mesmas areias testemunharam porres de paixão, mas acho ótimo que areia é mineral mudo que não aprendeu mímica.
O primeiro pedido de fera UFPE 2000 de medicina foi banho de mar com roupa e tudo. Se um pai de santo, eu ainda menino, estava correto em me dizer que sou filho de Iemanjá, careceu do sobrenome: Iemanjá da Boa Viagem. Em tudo que é aperto ou largura em minha vida lá vou encher a mão em concha nas águas de mainha. Antes do árduo caminho à Morada da Paz para os funerais do meu velho Bibi, via-se, à luz do dia, um ser tristonho de cuecas indo pedir a bênça à Iê Iê.
No meu último ano de BV, resolvi, num ímpeto inconsciente de saudade, que deveria correr na areia e, ao final, me presentear com mergulho. Consegui me despedi à altura apesar dos arranha-céus.
Nos anos que correm, venho me deliciando com mainha muito de vez em vez, quando costumo pedir bênça e refazer votos de batismo, mas moro no Riocife, terra-água que me faz transitar nos sarrabulhos marolentos da saudade.